A PARTIR DE CLIMA / Antonio Candido

O livro "Homenagem a Decio de Almeida Prado", lançado agora pela Scortecci Editora, reúne sete discursos, incluindo um do homenageado, que apresentam várias facetas do crítico. A homenagem, à qual compareceram personalidades do mundo cultural, aconteceu no dia 18 de novembro de 1995, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Os destaques do livro são a fala do próprio Decio de Almeida Prado, "Oração aos Velhos" (já publicada pelo Mais!), a do crítico e professor de teatro Sábato Magaldi, "Saudação", e a do crítico literário Antonio Candido, "A Partir de Clima". Nela, Candido relembra a trajetória do amigo e termina -quebrando uma "norma tácita do 'Grupo de Clima' - por elogiá-lo: "Estou certo de que Decio não me repreenderá. Esta é uma circunstância excepcional, numa quadra excepcional das nossas vidas, pois é a que está perto do fim. Por isso é lícito um amigo falar bem do outro em público, sobretudo neste caso, quando se trata, não de elogiar, mas de dizer a verdade sobre um dos maiores intelectuais que é também um dos maiores homens de bem que o Brasil conhece em nosso tempo, como é, fora de qualquer dúvida, Decio de Almeida Prado".

GRUPO DE CLIMA

Estou nesta mesa como velho amigo de Décio de Almeida Prado, mas amigo de um tipo especial, como membro do nosso grupo de mocidade, conhecido naquele tempo por “grupo de Clima”, ou “turma do Clima”. O que era Clima?, perguntarão os de hoje. Era uma revista fundada em 1941 que durou até 1944, tendo sido tirados dezesseis números. A idéia foi de um amigo mais velho, Alfredo Mesquita, que falou a respeito com Lourival Gomes Machado no fim de 1940. Lourival foi sempre o nosso diretor, tendo imaginado a estrutura inicial (modificada mais tarde), desenhado a capa e encontrado o título. Alfredo e ele determinaram quais seriam as seções fixas, em número de sete, e escolheram os seus encarregados, além de apontar alguns amigos como colaboradores íntimos.

Essa atribuição foi importante em nossas vidas, porque definiu o que seria a atividade de cada um para sempre. Foi assim que nos tornamos praticantes de várias modalidades de crítica, cabendo a Décio a de teatro. 

A partir do terceiro número a revista foi feita praticamente por ele e sua mulher, Ruth, ajudados por alguns de nós, tendo a casa deles, na Rua Itambé, como redação. A eles deveram-se, portanto, a continuidade e a regularidade de Clima, e se menciono este fato, é para destacar um traço da personalidade de Décio: a constância nas dedicações, pois ele não é um homem de compromissos passageiros, mas um homem de fidelidades. 

Creio que Clima foi a primeira manifestação “externa”, “fora de muros”, da nova mentalidade originada pela Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo no setor de humanidades, porque efetuou a sua projeção na vida cultural da cidade. Para o nosso grupo ela teve um papel decisivo, pois nos permitiu organizar de modo sistemático o que não passava de troca despreocupada de idéias e manifestação de tendências vagas, formando uma “atmosfera” comum que marcou a todos nós. Eu diria que Clima, como revista e como grupo da revista, foi para nós uma oportunidade de formação recíproca, cada um recebendo e comunicando cultura sem perceber que o estava fazendo. 

Mais tarde, Décio prolongou, de certo modo e de maneira muito pessoal, a mentalidade e os hábitos intelectuais gerados na Faculdade de Filosofia e filtrados através do grupo de Clima. Quero me referir à sua notável atuação como diretor do “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, cujo papel relevante na cultura brasileira não é preciso sublinhar. 

Pode-se dizer que ninguém era mais indicado do que ele para essa tarefa difícil e trabalhosa. Isto, em virtude do seu tipo de personalidade, equilibrada com uma harmonia rara. Nela se fundem a maestria da inteligência e o alto teor humano, de maneira a definir uma atitude permanente de compreensão e justiça. Por isso, pôde fazer do “Suplemento”, durante tantos anos, um lugar de encontro de tendências diversificadas e válidas da literatura brasileira daquele momento, combinando modernidade e tradição, como é típico do meio cultural de São Paulo que ele encarna tão bem. Esse equilíbrio era patente desde o nosso grupo de mocidade, no qual, enquanto nós tacteávamos  e variávamos, ele já tinha encontrado o seu “estilo”. Estou usando esta palavra no sentido amplo que engloba escrita e comportamento, para concluir que o seu modo de escrever e de viver se caracterizam pela sobriedade vigorosa e pela lúcida integridade.

Considerando o terreno estritamente literário, ele foi o primeiro de nós a manifestar, na escrita, uma conci­são e uma maturidade que foram se refinando com o cor­rer dos anos, sempre aliadas à liberdade de imaginação. Eu diria que a sua escrita elegante e correta é homóloga da retidão que caracteriza o seu modo de ser e de avaliar. Por isso, se tomou um grande crítico e exerceu um ma­gistério decisivo na renovação do teatro brasileiro. 

Neste momento, estou violando uma norma tácita do “grupo de Clima”: não alegar serviço, não reivindicar primazias, não cultivar a vanglória, não praticar o elogio mútuo. Sempre fomos rigorosos nisto e, talvez, até um pouco sóbrios demais uns em relação aos outros, apesar do bom conceito que possamos ter tido uns dos outros. Para ser exato, eu diria que assim fomos até a velhice depois de velhos, temos quebrado um pouco a norma .. : Mas estou certo de que Décio não me repreenderá. Esta é uma circunstância excepcional, numa quadra excepcional das nossas vidas, pois é a que está perto do fim. Por isso, é lícito a um amigo falar bem do outro em público, sobretudo neste caso, quando se trata, não de elogiar, mas de dizer a verdade sobre um dos maiores intelectuais que é também um dos maiores homens de bem que o Brasil conhece em nosso tempo, como é, fora de qualquer dúvida, Décio de Almeida Prado.

Antonio Candido