OS PRIMEIROS CEM ANOS DE PAULO FREIRE / POR MARIA MORTATTI

“De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi sobretudo que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social.” (Paulo Freire, Unesco, Paris, 1986). 


Como se sabe, o educador e filósofo Paulo Reglus Neves Freire (Recife/PE, 19.9.1921 – São Paulo/SP, 2.5.1997), o “Patrono da Educação Brasileira” (Lei n. 12.162/12), é um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. É o brasileiro mais homenageado com dezenas de títulos de Doutor Honoris Causa em universidades estrangeiras; com muitos prêmios e homenagens, como “Educação para a Paz”, da Unesco, em 1986; Ordem do Mérito Cultural, do governo brasileiro, em 2011; Patrono da Associação Brasileira de Alfabetização, em 2012. Integra o International Adult and Continuing Education Hall of Fame (Universidade de Oklahoma – EUA) e o Reading Hall of Fame. Sua vida e obra são fonte de inspiração e objeto de estudo em universidades brasileiras e estrangeiras e em centros de estudo batizados com seu nome no Brasil, na África do Sul, na Áustria, na Alemanha, na Holanda, em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. Conforme pesquisa realizada em 2016, pelo professor Elliot Green, da London School of Economics, a versão em inglês de Pedagogia do oprimido é a terceira obra mais citada no mundo naquele ano. Escrito em 1968, durante o exílio no Chile e proibido no Brasil, onde foi publicado somente em 1974 — é o único livro brasileiro na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa.

Também como se sabe, para Paulo Freire, a educação é um ato político, ou seja, não é neutra em suas finalidades, conteúdos e métodos de ensino. Sua filosofia e concepção crítica se fundamentam na opção política por uma educação humanizadora, emancipadora e transformadora, em defesa dos "esfarrapados do mundo [...] e os que com eles lutam” para a construção de um projeto de nação mais justa e igualitária.


Uma de suas contribuições mais comentadas — e talvez menos conhecidas, de fato — é o método de alfabetização que criou e foi utilizado pela primeira vez em 1963, na cidade de Angicos/RN, tendo alfabetizado em 40 horas, sem cartilha, 300 trabalhadores rurais, em um projeto-piloto do que seria o Programa Nacional de Alfabetização do governo do presidente João Goulart, deposto com o golpe militar em março de 1964. Esse método se baseia na experiência de vida das pessoas em seu contexto social e se desenvolve por meio de prática dialética e dialógica, com a finalidade de promover a conscientização política dos alfabetizandos, contrapondo-se à “educação bancária”. Não deve ser confundido, portanto, com mais um método, no sentido de mero conjunto de passos e procedimentos técnico-didáticos característicos das plurisseculares disputas políticas entre métodos sintéticos e analíticos para o ensino inicial da leitura e escrita, que se repetem desde ao menos o século XIX e, com outro matiz ideológico, renovam-se neste momento, no Brasil, obrigando-nos a recordar a advertência de Paulo Freire, em Educação como prática de liberdade (1967, p. 18):

“[...] o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem uma “erva daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente linguístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização por meio da qual se pretende superá-lo. Proclamar a sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca.”


Isso e muito mais ainda se sabe e se pode e se deve dizer sobre esse educador/filósofo e a importância de seu legado para muitas gerações — passadas, presentes e futuras — de educadores.

Como muitos professores e pesquisadores de minha geração, tive o privilégio de conhecer Paulo Freire e sua obra quando cursava o mestrado em Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nos anos 1980. Foi uma feliz coincidência estar naquela época, naquela universidade e poder ouvi-lo em suas aulas e em eventos acadêmicos. Eram momentos sempre impactantes, que ainda ecoam na memória e na releitura dos primeiros livros dele que conheci: Pedagogia do oprimido, A importância do ato de ler, Educação como prática de liberdade. Do primeiro, ficou-me a advertência: “A superação da contradição opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem de um polo a outro”. Do segundo, o aforismo pedagógico: “A leitura do mundo precede [mas não substitui] a leitura da palavra”. Do terceiro, o “princípio” de seu pensamento e atuação: a “politicidade intrínseca” do analfabetismo, da alfabetização e da educação.


Devo o encontro com Paulo Freire aos que se empenharam para que, com seu retorno ao país, após 15 anos de exílio, ele se tornasse professor no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp. Uma peça antológica do “processo kafkiano” para confirmação de sua contratação é o indignado “não parecer”, de 25/05/1985, elaborado pelo então chefe daquele departamento, o professor Rubem Alves:


“[...] meu parecer é uma recusa em dar um parecer. E nesta recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse. Mas ele se sustenta sozinho. Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir. A questão não é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.”


Especialmente neste ano de comemoração de seu primeiro centenário, em que Paulo Freire é rememorado e celebrado — e não apenas no Brasil —, a questão já não é mais se desejamos tê-lo conosco ou se ele deseja trabalhar ao nosso lado. Seu legado está intrinsicamente incorporado ao patrimônio educacional e cultural brasileiro e mundial, a despeito de acusações negacionistas, infundadas e equivocadas por parte de alguns grupos políticos de extrema-direita ultraconservadora, que certamente nunca leram seus livros. Eles passarão. Paulo Freire ficou e ficará por muitos outros cem anos, lido, estudado, aclamado e homenageado. Sempre necessário para a construção da educação para a paz, como “construção incessante da justiça social”. E, sobretudo neste momento, necessário para nos recordar do “imperativo existencial e histórico” que reafirma em Pedagogia da esperança (1992, s.p.):


“É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”


MARIA MORTATTI - 14.11.2021

Poeta, escritora e professora titular na Universidade Estadual Paulista.