Não sou lexicógrafa, mas gosto muito de dicionários de vários tipos: gerais, temáticos, analógicos, etimológicos, bilíngues, plurilíngues, enciclopédicos, entre outros. Tenho um número considerável deles em livros físicos, além dos favoritos em formato digital/edição eletrônica ou on-line. Não sei ao certo qual é o motivo, mas acho que não se pode mais viver sem essas obras de consulta/referência que, como ensina o “Aurélio”: “[Do lat. Medieval dictionariu.] contêm o “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado, ou a sua versão em outra língua. 2. Obra ou livro que os consigna [Sin. Nesta acepção: pai dos burros.]”
Conforme estudiosos da lexicografia – técnica ou ciência de
elaboração de dicionários, vocabulários e glossários –, na Mesopotâmia, por
volta de 2.600 a.C., eram usadas as tabuinhas sumérias contendo listas de
signos e palavras, principalmente para o aprendizado nas escolas dos escribas.
No mundo ocidental antigo, não foram produzidas obras lexicográficas como
conhecemos atualmente; no período medieval, com a ascensão das línguas
vernáculas, foram elaborados alguns glossários em textos manuscritos para explicar
diferenças com o latim; e somente em 1225 há registro de uso da palavra
“dicionário”, originada do latim “dictionarius”. Em relação às línguas
latinas, a lexicografia tem início com os dicionários renascentistas bilíngues,
precursores dos dicionários monolíngues contemporâneos. Nos séculos XV e XVI,
foram elaborados os primeiros dicionários por franceses e espanhóis, mas, pela
importância e repercussão que teve, o primeiro grande dicionário da era moderna
ocidental, que originou a lexicografia autorizada por abonações de autores
latinos e a produção de dicionários em ordem alfabética, foi o Dictionarium
linguae latinae (bilíngue, latim-italiano), do monge agostiniano
Ambrogio Calepino (1440 – 1510), natural da província italiana de Bergamo. A
primeira edição foi impressa em Reggio, no ano de 1502, pelo impressor
Dionysius Bertochus. Foi o dicionário mais vendido do século XVI, com 211
edições até 1779 e várias reedições e ampliações até o século XVIII. Contou com
colaboração dos mais eruditos humanistas e demandou uma grande mobilização
tipográfica entre os prelos mais qualificados da Europa. Em português, a
primeira edição foi impressa em Lisboa, em 1621, em três línguas: latim,
português e espanhol. Tal foi o sucesso da obra, que “Calepino” passou a designar
(por metonímia) dicionário, lista ou compilação ordenada de palavras,
vocabulário, livro de anotações e agenda, acepções também registradas no nosso
“Aurélio”. Nos séculos seguintes, foram elaborados vários dicionários
monolíngues em países europeus, como os portugueses que também circularam no
Brasil. O mais famoso entre eles é do Padre Rafael Bluteau –Vocabulário
portuguez e latino, em 8 volumes, publicado em Coimbra, entre 1712 e 1721.
Em 1789, foi “reformado e acrescentado” pelo lexicólogo brasileiro Antonio de
Morais e Silva (1755 –1824), que fora a Lisboa cursar Direito e lá acabou
elaborando o primeiro dicionário monolíngue da língua portuguesa (com segunda
edição em 1813), no qual introduziu palavras do português falado no Brasil.
Depois desses, dois outros dicionários monolíngues se destacaram: o Aulete,
Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (1881), planejado pelo
lexicólogo lisboeta Francisco Júlio de Caldas Aulete (1823 – 1878), e, com sua
morte, completado por colaboradores; e o de Cândido de Figueiredo, Novo
dicionário da língua portuguesa, de 1899, que teve cinco edições e
pretendia ser o repositório mais completo do léxico português de todos os
tempos e de regionalismos portugueses, brasileiros e de territórios onde se
falava e fala o português.
O dicionário brasileiro de maior sucesso desde as décadas finais
do século XX é, sem dúvida, o Novo dicionário da língua
portuguesa (Nova Fronteira, 1975), do lexicógrafo, professor,
tradutor, ensaísta e crítico literário brasileiro Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (03.05.1910 – 28.02.1989). Baseando-se numa versão anterior
intitulada Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa (1941),
de que participou a convite de Manuel Bandeira e que teve sucessivas reedições,
Aurélio aumentou substancialmente o novo dicionário, com o auxílio dos
assistentes e colaboradores: Joaquim Campelo Marques, Margarida dos Anjos, Elza
Tavares Ferreira, Stella R. O. Medeiros e Marina Baird Ferreira (sua esposa).
Como relata o jornalista Cézar Motta, no livro Por trás das palavras –
As intrigas e disputas que marcaram a criação do dicionário Aurélio, o maior
fenômeno do mercado editorial brasileiro (Máquina de Livros, 2015),
depois de uma saga em busca de editora, o dicionário foi lançado "com
pompa e circunstância" no Rio de Janeiro, em 11 de julho de 1975, mas já
estava nas livrarias desde março daquele ano. Com mais de 1.500 páginas,
em que foram incorporadas, entre outros, gírias e palavras novíssimas, surgidas
durante o movimento hippie do final dos anos 1960, terminologia usada pelos
tecnocratas da economia a partir do governo Castello Branco e definição de
marcas de produto que passaram a representar o próprio produto, teve uma
tiragem inicial de 18 mil exemplares com “cerca de mil erros”, corrigidos na segunda
edição revista e aumentada, de 1986 – com 115.243 vocábulos –, e nas
reimpressões seguintes. Em 11 anos, o “Aurélio” vendeu o triplo de toda a obra
reunida de Jorge Amado. Além das edições da versão integral impressa, foram
publicadas edições para públicos específicos, como: o Minidicionário: o
Aurélio escolar, em 1977, de menor preço e distribuído pelo Governo
Federal nas escolas públicas, com venda de quase 4 milhões de exemplares da
primeira edição; e a versão de extensão média, lançada em 1980, que atingiu 100
mil exemplares. As vendas das três versões na primeira edição alcançaram no
total cinco milhões e duzentos mil exemplares até segunda edição, em1987, o que
fez da obra a segunda mais vendida no Brasil no período, perdendo somente para
a Bíblia, que vendeu cerca de 11 milhões de exemplares. Depois, foram lançados
o Mini Aurélio infantil – com ilustrações de Ziraldo – e
o Mini Aurélio século XXI escolar e suas versões
eletrônicas, inicialmente pela Nova Fronteira, e, desde o início deste século,
pela Editora Positivo, que passou a deter os direitos sobre a obra. Em 2003,
ainda pela Nova Fronteira, o cartunista Maurício de Sousa lançou uma edição do
dicionário com ilustrações da Turma da Mônica; em 2011, a Positivo lançou uma
nova edição voltada para o público adolescente, contendo novos termos oriundos
da Internet, além de capa colorida. O "Aurélio" foi também lançado em
CD-Rom, em 1999, e, em versão para Internet, em 2003. Atualmente está
disponível em versão digital/eletrônica para computador e celular. A história
da obra é marcada ainda pela disputa judicial, por coautoria e pagamentos de
royalties e percentual de direitos autorais, a pedido de dois lexicógrafos da
equipe de Aurélio: Joaquim Campelo, braço direito do dicionarista, desde o início
do projeto, e Elza Tavares, falecida em 2010 e representada por sua sobrinha. O
desfecho, em 2015, foi favorável aos herdeiros de Aurélio e ao Grupo Positivo.
Depois do “Aurélio”, foram lançados dicionários de destaque, em versões
impressas, digital/eletrônica, on-line e colaborativa, com destaque para:
o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), do
lexicógrafo, tradutor e diplomata brasileiro Antonio Houaiss, e o Priberam (on-line)
da Academia de Ciências de Lisboa, além do Vocabulário ortográfico da
língua portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, constantemente
atualizados. Mas o “Aurélio” – atualizado periodicamente pela lexicógrafa
carioca Renata Menezes – continua uma referência essencial, confirmando o
sucesso editorial desde seu lançamento em 1975, apesar das críticas de
lexicógrafos. Desbancou o “Aulete” das décadas anteriores, e “Aurélio” passou a
designar (por metonímia) dicionário, embora, por modéstia do autor, essa
acepção não esteja registrada naquele que a origina.
Do “Calepino” ao “Aurélio”, a fascinante história dos
dicionários modernos é mais uma prova de que a línguas são organismos vivos.
Vocábulos morrem e nascem todos os dias na boca do povo, na pena dos escritores
e no volátil mundo da Internet e das mídias sociais. Dicionários de séculos
atrás se tornaram obsoletos para os usuários, embora sejam documentos valiosos
para os estudos sobre lexicografia e para conhecer nossa história. Os de
décadas atrás, se permanecem como referência, é porque são constantemente
atualizados com novos vocábulos e adaptados às novas tecnologias de informação,
mais lentamente nas edições impressas ou mais agilmente nas edições
digitais/eletrônicas. Continuam sendo, por isso, um excelente negócio para
editoras e autores, mas, sobretudo, uma imprescindível fonte de consulta para
os usuários.
Essa história prova, ainda, que dicionário é "pai dos
inteligentes", como conta a lenda sobre a origem da alcunha "pai dos
burros” atribuída ao “Aurélio”: o pai de Aurélio era fabricante de carroças
apreciadas pelos fregueses que diziam não ter palavras para lhe agradecer pelo
conforto que dava aos passageiros e aos burros. O menino Aurélio, então,
decidiu fazer uma lista de palavras para que eles pudessem agradecer seu pai.
Assim nasceu seu primeiro dicionário. Como história puxa história,
lembrei-me do presente que ganhei de um amigo no Natal de 1986: um
exemplar da segunda edição do "Aurélio", lançada naquele ano. Sabendo
do meu gosto por dicionários e por poesia, ele escreveu na dedicatória: “Palavras?
Aqui você as tem aos montes. (...)". E, com um marcador de páginas,
indicou estes versos do poema "Oda al diccionario" ("Ode
al dicionário"), de Pablo Neruda, em epígrafe no verso da folha de rosto
daquele precioso volume: "Diccionario, no eres/tumba, sepulcro, féretro,/tumulo,
mausoleo/sino preservación,/fuego escondido/plantación de rubies,/perpetuidad
viviente/de la esencia/granero del idioma." ("Dicionário, não
és/tumba, sepulcro, féretro,/túmulo, mausoléu/mas preservação,/fogo
escondido/plantação de rubis,/perpetuidade vivente/da essência/celeiro do
idioma.") (Tradução livre)