UMA HISTÓRIA DE DICIONÁRIOS: DO "CALEPINO" AO "AURÉLIO" / MARIA MORTATTI

Não sou lexicógrafa, mas gosto muito de dicionários de vários tipos: gerais, temáticos, analógicos, etimológicos, bilíngues, plurilíngues, enciclopédicos, entre outros. Tenho um número considerável deles em livros físicos, além dos favoritos em formato digital/edição eletrônica ou on-line. Não sei ao certo qual é o motivo, mas acho que não se pode mais viver sem essas obras de consulta/referência que, como ensina o “Aurélio”: “[Do lat. Medieval dictionariu.] contêm o “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado, ou a sua versão em outra língua.  2. Obra ou livro que os consigna [Sin. Nesta acepção: pai dos burros.]” 

Conforme estudiosos da lexicografia – técnica ou ciência de elaboração de dicionários, vocabulários e glossários –, na Mesopotâmia, por volta de 2.600 a.C., eram usadas as tabuinhas sumérias contendo listas de signos e palavras, principalmente para o aprendizado nas escolas dos escribas. No mundo ocidental antigo, não foram produzidas obras lexicográficas como conhecemos atualmente; no período medieval, com a ascensão das línguas vernáculas, foram elaborados alguns glossários em textos manuscritos para explicar diferenças com o latim; e somente em 1225 há registro de uso da palavra “dicionário”, originada do latim “dictionarius”. Em relação às línguas latinas, a lexicografia tem início com os dicionários renascentistas bilíngues, precursores dos dicionários monolíngues contemporâneos. Nos séculos XV e XVI, foram elaborados os primeiros dicionários por franceses e espanhóis, mas, pela importância e repercussão que teve, o primeiro grande dicionário da era moderna ocidental, que originou a lexicografia autorizada por abonações de autores latinos e a produção de dicionários em ordem alfabética, foi o Dictionarium linguae latinae (bilíngue, latim-italiano), do monge agostiniano Ambrogio Calepino (1440 – 1510), natural da província italiana de Bergamo. A primeira edição foi impressa em Reggio, no ano de 1502, pelo impressor Dionysius Bertochus. Foi o dicionário mais vendido do século XVI, com 211 edições até 1779 e várias reedições e ampliações até o século XVIII. Contou com colaboração dos mais eruditos humanistas e demandou uma grande mobilização tipográfica entre os prelos mais qualificados da Europa. Em português, a primeira edição foi impressa em Lisboa, em 1621, em três línguas: latim, português e espanhol. Tal foi o sucesso da obra, que “Calepino” passou a designar (por metonímia) dicionário, lista ou compilação ordenada de palavras, vocabulário, livro de anotações e agenda, acepções também registradas no nosso “Aurélio”. Nos séculos seguintes, foram elaborados vários dicionários monolíngues em países europeus, como os portugueses que também circularam no Brasil. O mais famoso entre eles é do Padre Rafael Bluteau –Vocabulário portuguez e latino, em 8 volumes, publicado em Coimbra, entre 1712 e 1721. Em 1789, foi “reformado e acrescentado” pelo lexicólogo brasileiro Antonio de Morais e Silva (1755 –1824), que fora a Lisboa cursar Direito e lá acabou elaborando o primeiro dicionário monolíngue da língua portuguesa (com segunda edição em 1813), no qual introduziu palavras do português falado no Brasil. Depois desses, dois outros dicionários monolíngues se destacaram: o Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (1881), planejado pelo lexicólogo lisboeta Francisco Júlio de Caldas Aulete (1823 – 1878), e, com sua morte, completado por colaboradores; e o de Cândido de Figueiredo, Novo dicionário da língua portuguesa, de 1899, que teve cinco edições e pretendia ser o repositório mais completo do léxico português de todos os tempos e de regionalismos portugueses, brasileiros e de territórios onde se falava e fala o português.

O dicionário brasileiro de maior sucesso desde as décadas finais do século XX é, sem dúvida, o Novo dicionário da língua portuguesa (Nova Fronteira, 1975), do lexicógrafo, professor, tradutor, ensaísta e crítico literário brasileiro Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (03.05.1910 – 28.02.1989). Baseando-se numa versão anterior intitulada Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa (1941), de que participou a convite de Manuel Bandeira e que teve sucessivas reedições, Aurélio aumentou substancialmente o novo dicionário, com o auxílio dos assistentes e colaboradores: Joaquim Campelo Marques, Margarida dos Anjos, Elza Tavares Ferreira, Stella R. O. Medeiros e Marina Baird Ferreira (sua esposa). Como relata o jornalista Cézar Motta, no livro Por trás das palavras – As intrigas e disputas que marcaram a criação do dicionário Aurélio, o maior fenômeno do mercado editorial brasileiro (Máquina de Livros, 2015), depois de uma saga em busca de editora, o dicionário foi lançado "com pompa e circunstância" no Rio de Janeiro, em 11 de julho de 1975, mas já estava nas livrarias desde março daquele ano. Com mais de 1.500 páginas, em que foram incorporadas, entre outros, gírias e palavras novíssimas, surgidas durante o movimento hippie do final dos anos 1960, terminologia usada pelos tecnocratas da economia a partir do governo Castello Branco e definição de marcas de produto que passaram a representar o próprio produto, teve uma tiragem inicial de 18 mil exemplares com “cerca de mil erros”, corrigidos na segunda edição revista e aumentada, de 1986 – com 115.243 vocábulos –, e nas reimpressões seguintes. Em 11 anos, o “Aurélio” vendeu o triplo de toda a obra reunida de Jorge Amado. Além das edições da versão integral impressa, foram publicadas edições para públicos específicos, como: o Minidicionário: o Aurélio escolar, em 1977, de menor preço e distribuído pelo Governo Federal nas escolas públicas, com venda de quase 4 milhões de exemplares da primeira edição; e a versão de extensão média, lançada em 1980, que atingiu 100 mil exemplares. As vendas das três versões na primeira edição alcançaram no total cinco milhões e duzentos mil exemplares até segunda edição, em1987, o que fez da obra a segunda mais vendida no Brasil no período, perdendo somente para a Bíblia, que vendeu cerca de 11 milhões de exemplares. Depois, foram lançados o Mini Aurélio infantil – com ilustrações de Ziraldo – e o Mini Aurélio século XXI escolar e suas versões eletrônicas, inicialmente pela Nova Fronteira, e, desde o início deste século, pela Editora Positivo, que passou a deter os direitos sobre a obra. Em 2003, ainda pela Nova Fronteira, o cartunista Maurício de Sousa lançou uma edição do dicionário com ilustrações da Turma da Mônica; em 2011, a Positivo lançou uma nova edição voltada para o público adolescente, contendo novos termos oriundos da Internet, além de capa colorida. O "Aurélio" foi também lançado em CD-Rom, em 1999, e, em versão para Internet, em 2003. Atualmente está disponível em versão digital/eletrônica para computador e celular. A história da obra é marcada ainda pela disputa judicial, por coautoria e pagamentos de royalties e percentual de direitos autorais, a pedido de dois lexicógrafos da equipe de Aurélio: Joaquim Campelo, braço direito do dicionarista, desde o início do projeto, e Elza Tavares, falecida em 2010 e representada por sua sobrinha. O desfecho, em 2015, foi favorável aos herdeiros de Aurélio e ao Grupo Positivo. Depois do “Aurélio”, foram lançados dicionários de destaque, em versões impressas, digital/eletrônica, on-line e colaborativa, com destaque para: o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), do lexicógrafo, tradutor e diplomata brasileiro Antonio Houaiss, e o Priberam (on-line) da Academia de Ciências de Lisboa, além do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, constantemente atualizados. Mas o “Aurélio” – atualizado periodicamente pela lexicógrafa carioca Renata Menezes – continua uma referência essencial, confirmando o sucesso editorial desde seu lançamento em 1975, apesar das críticas de lexicógrafos. Desbancou o “Aulete” das décadas anteriores, e “Aurélio” passou a designar (por metonímia) dicionário, embora, por modéstia do autor, essa acepção não esteja registrada naquele que a origina.

Do “Calepino” ao “Aurélio”, a fascinante história dos dicionários modernos é mais uma prova de que a línguas são organismos vivos. Vocábulos morrem e nascem todos os dias na boca do povo, na pena dos escritores e no volátil mundo da Internet e das mídias sociais. Dicionários de séculos atrás se tornaram obsoletos para os usuários, embora sejam documentos valiosos para os estudos sobre lexicografia e para conhecer nossa história. Os de décadas atrás, se permanecem como referência, é porque são constantemente atualizados com novos vocábulos e adaptados às novas tecnologias de informação, mais lentamente nas edições impressas ou mais agilmente nas edições digitais/eletrônicas. Continuam sendo, por isso, um excelente negócio para editoras e autores, mas, sobretudo, uma imprescindível fonte de consulta para os usuários. 

Essa história prova, ainda, que dicionário é "pai dos inteligentes", como conta a lenda sobre a origem da alcunha "pai dos burros” atribuída ao “Aurélio”: o pai de Aurélio era fabricante de carroças apreciadas pelos fregueses que diziam não ter palavras para lhe agradecer pelo conforto que dava aos passageiros e aos burros. O menino Aurélio, então, decidiu fazer uma lista de palavras para que eles pudessem agradecer seu pai. Assim nasceu seu primeiro dicionário. Como história puxa história, lembrei-me do presente que ganhei de um amigo no Natal de 1986: um exemplar da segunda edição do "Aurélio", lançada naquele ano. Sabendo do meu gosto por dicionários e por poesia, ele escreveu na dedicatória: “Palavras? Aqui você as tem aos montes. (...)". E, com um marcador de páginas, indicou estes versos do poema "Oda al diccionario" ("Ode al dicionário"), de Pablo Neruda, em epígrafe no verso da folha de rosto daquele precioso volume: "Diccionario, no eres/tumba, sepulcro, féretro,/tumulo, mausoleo/sino preservación,/fuego escondido/plantación de rubies,/perpetuidad viviente/de la esencia/granero del idioma." ("Dicionário, não és/tumba, sepulcro, féretro,/túmulo, mausoléu/mas preservação,/fogo escondido/plantação de rubis,/perpetuidade vivente/da essência/celeiro do idioma.") (Tradução livre)

Maria Mortatti – 10.06.2023