O FIEL COMPROMISSO DO TRADUTOR NA TRADUÇÃO / J. R. Guedes de Oliveira

Há muitos anos, em visita que fiz ao saudoso Dr. Pedro Moreira Barbosa, em Belo Horizonte, morando no Bairro Savassi, mas de sua origem de Curvelo, recebi, dele, algumas dezenas de cópias das cartas trocadas entre Guimarães Rosa e o seu tradutor em italiano. Nestas longas cartas, se esclareciam os mais de três mil verbetes criados pelo autor de Grande Sertão: Veredas. Aliás, as mesmas eram sobre a referida obra.

Passado algum tempo, doei todo material que tinha sobre Guimarães Rosa, para a PUC-Minas, que estava organizando uma espécie de museu em honra ao grande ficcionista do século XX, a exemplo que temos na Universidade de São Paulo – USP.

Nestas cartas observa-se o cuidado de ambos na denominação correta de tais palavras, obtendo, assim, o melhor resultado de seu significado. Um trabalho que denodou bom tempo para, depois, concluir perfeitamente a tradução da obra para o italiano.

Este cuidado de tradução, é bem explicado pela pesquisadora Alice Santana de Lima, em sua tese “A tradução como um ato criativo”, quando ela nos diz: 

“O ato de traduzir não exige simplesmente a busca por termos e expressões rigorosamente correspondentes entre uma língua e outra: na verdade, pressupõe a execução de um ato interpretativo que extrapola o logocentrismo. Sendo assim, deve ser uma tradução não apenas de palavras, mas a efetiva construção de sentidos. Isso deve ser feito pelo tradutor não com o intuito de atribuir as definições que bem entender ao objeto do qual se ocupa, mas de apreender seu contexto social e ideológico e, aí sim, lhe dar o sentido mais adequado na nova língua para a qual será transcrito”.

Inúmeras traduções, que correm por ai, nem sempre se pode dizer da sua autenticidade, pois que a valoração não corresponde ao espírito do que o autor, na sua língua, disse ou desejou explicar. Muitas das vezes, são traduções vagas, sem conteúdo, no chamado “tradução ao pé da letra”, afastando, por conseguinte, das nuances que a outra língua pode e deve revelar de conteúdo correto, eficiente e eficaz, se é que podemos especificar estes três elementos da filologia, numa só comparação. 

Num excelente ensaio com o título de “Meditações em torno da tradução” feito pelo insigne Prof. Dr. Newton Sabbá Guimarães, em 1996, assim ele afirma peremptoriamente:

“A tradução é também autoescravização. O bom tradutor, aquele que busca a perfeição para o trabalho traduzido, escraviza-se, sofre, angustia-se. A busca da palavra exata, é sempre uma tortura da qual o artista não escapa. Nem o bom tradutor, este duplamente, acredito por trabalhar a obra alheia. A semântica é senhora tirânica e volúvel. A semântica é uma mulher caprichosa e não era Virgílio, o sumo Virgílio quem, no quarto canto da Eneida, proclamava a volubilidade da mulher com aqueles versos irônicos mas profundos:

E existirão, também, os arremedos de traduções, as tremendas traições ao pensamento de bons escritores, as traduções sem arte, os simulacros, os pastichos a a diluviarem nas mãos dos leitores e a engordarem estantes das livrarias. Existirão as traduções de traduções mentirosamente labeladas como feitas do original, expediente mais ou menos comum  entre os nossos tradutores, em um País de doutores, de eruditos, de  grandes sabedores, de enciclopedistas de peito inchado, muita banófia e pouca humildade intelectual. As traduções “originais” do russo, do alemão, do  norueguês, do sueco, do grego, do polonês, até do finlandês e do hebraico feitas diretamente do.... francês e do espanhol!... aí então, enganando a boa fé do leitor que, embasbacado, comentará, elogiosamente, sobre o poliglotismo deste ou daquele tradutor, o que, de resto, não é de assustar em uma terra onde não existem estudantes, mas somente mestres. Seja como for, a lista das más traduções será sempre infinita, como grande é a das boas.  São  falhanços e compensações, erros e acertos, ilusões e frustrações, vitórias e derrotas no romance vivo da tradução, como, por sinal, tudo na interminável comédia da vida!”. 

Em vista do aqui descrito sobre a tradução e a verdadeira concepção do que o autor quis dizer ou foi a sua vida, reporto-me a biografia de Madame Curie, (título “Madame Curie”, 3ª. Edição, Cia. Editora Nacional, 1955) feita pela sua filha Eva Curie. Esta obra tem a tradução de Monteiro Lobato, impecável, como a descrição da própria biografada pela sua dileta filha. 

Assim, para enfatizar muito bem o caminho que o tradutor deseja seguir, bem como a descrição do biografado, como é o caso deste livro, precisamos nos aprisionar na verdade indiscutível que as figuras envolvidas estão inseridas. De um lado a descrição correta da personalidade da biografada. Do outro lado, também, o tradutor (neste caso, o grande Monteiro Lobato), passando do original em francês, para a língua portuguesa.

Com efeito, temos a descrição fiel que a biógrafa Eva Curie faz de sua mãe: “A uma história assim, igual a um mito, eu seria culpada se ajuntasse o menor enfeite. Nada contei de que não estivesse absolutamente segura. Não deformei ima frase essencial, não inventei uma cor de vestido. Os fatos deram-se, as palavras foram pronunciadas” (notas introdutórias ao livro, pela Eva Curie). 

Assombro-me, pois, pela enorme capacidade de Monteiro Lobato em traduzir, fielmente, esta obra que relata a vida e as conquistas dessa verdadeira madame chamada Marie Sklodovska Curie, nascida em Varsóvia (Polônia) em 1867 e falecida em Paris (França), em 1934. São biografias de tal envergadura que nos surpreende pela forma da escrita e tradução, dentro de características essenciais para ler, refletir e se inspirar em tais empreendimentos humanos. Uma biografia que relate, claramente, uma personalidade de realce, como ela, deve ser algo extraordinário na literatura mundial, mormente em se tratando de uma notável cientista.