SOBRE CIDADÃO INHACA E OS BIBLIÓFAGOS DO APOCALIPSE NO TEXTO DE JOÃO SCORTECCI / Por Carmem Teresa do Nascimento Elias

Ao deparar-me recentemente com um texto de João Scortecci, editor de meu livro de contos Perdidos Atávicos, cheguei à constatação de que, ao se relatar memórias de infância ou priscas eras, reconhecemos que atávicas são as múltiplas manifestações de elementos do simbólico e do sagrado comuns às mais diversas culturas. Não são raros os elos que interpõem as manifestações de diferentes sociedades através de tempos e locais distintos. Atávica é a vida que evolui ante os meandros históricos da cultura da Humanidade e sua representação junto ao mundo. 

Dentre esses achados atávicos, Scortecci nos traz a reminiscência de um bode, denominado ‘Cidadão Inhaca ‘, guardião de ‘A Verdade’. O bichano comia livros e só concedia acesso à gráfica do referido jornal após lhe ofertarem páginas literárias de escritores cearenses para sua degustação - literalmente. 

Eis, portanto, um caso inusitado de -fagia, termo grego de formação de palavras que expressa a noção de alimentação ou ação verbal de comer. 

O primeiro pensamento que me ocorreu foi da necessidade de uma sessão de psicanálise animal para o bode fedorento. A boca, a fome, o comer, o devorar estão intrinsicamente relacionados à fase oral do desenvolvimento psicológico, ao seio materno, à aquisição da linguagem e da fala. 

Que poderia intencionar aquele bode senão ao alcance de um intelecto mais elevado e de uma consciência mais próxima à humana? Porém meu pensamento logo virou-se para o rito mítico religioso. Em modo semelhante ao bode diante de escritos sagrados, não almeja o ser humano atingir um conhecimento superior, o conhecimento divino? Haveria naquele bode cidadão um an-seio de aquisição de linguagem? Um desejo de poder falar? Um desejo de Verbo? 

A abertura do primeiro capítulo do evangelho de João na Gênesis já nos sintetiza: “No início era o Verbo... nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. 

Caberia a um bode comer um livro de literatura? Vários livros de diversas bibliotecas, inclusive. Deveria ter sido proibido ao animal comer as páginas e palavras, assim como a maçã, enquanto símbolo do conhecimento divino, também fora proibida a Adão e Eva no paraíso. Porém, nem o bode e nem o ser humano resistiram à tentação de evoluir pelo conhecimento e pelo acesso ao Verbo, que se mastiga e engole. Talvez haja no bode a representação simbólica da maçã bíblica, do favo de mel e das melhores frutas saboreadas pelo casal de noivos do Cântico dos Cânticos de Salomão. 

Eis a fagia de deuses _a teofagia. 

Em Jeremias 15:16, o Verbo, assim entendido como fruto na boca de Deus, exprime a realização da Verdade. Em Scortecci, as obras literárias, ofertadas ao bode, concedem o acesso aos domínios gráficos de A verdade. 

Para as religiões mais antigas, a teofagia consistia um rito de ingestão sacramental do respectivo Deus, manifestado na forma de um homem, de um animal, ou de qualquer elemento simbólico. Teoricamente originário no Oriente (cultura veda), o mitraísmo tem por princípio a refeição sacrificial que envolvia comer a carne e beber o sangue de um touro, no qual estaria presente o deus Mitra, concedendo, assim, salvação àqueles que tomavam parte na refeição. 

Sendo o verbo palavra fruto, sendo a palavra considerada um alimento divino, São Paulo teria instituído, então, na religião cristã o ritual da última ceia, como oferta do próprio corpo e sangue divinos. Já sendo a escritura sagrada manifestada em forma de livro, em um livro estão contidos os ensinamentos sagrados do corpo e sangue de seus autores. 

Assim considerado como elemento do simbólico, ao ser humano, enquanto dotado de verbo e conhecimento aos olhos do bode, cabe oferecer-lhe o verbo onipotente dos livros ‘eucarísticos’ da literatura cearense. 

Originário na Índia, desde 5 mil A.C, o mitraísmo evoca um rito de proteção e vigilância. Exatamente a função do bode diante da gráfica A Verdade. O princípio religioso estendeu-se, posteriormente, à Pérsia, onde associou-se a Zoroastro como um intermediário entre Deus e o humano. Uma concepção bem semelhante a Jesus Cristo. Por volta do século 1 ou 2 D.C., o mitraísmo chegou à Grécia e, logo a seguir, a Roma, onde foi cultuado até 399 D.C., como rito de proteção e combate contra o mal. O Mitraísmo e o Cristianismo foram religiões coexistentes nos três primeiros séculos da era cristã. 

Haverá algum resquício atávico no bode do Ceará, onde a literatura sonha com a própria bibliofagia? Estamos diante do livro do apocalipse?  Até onde o bode cidadão guardião de Scortecci pretende nos conduzir?

Carmem Teresa do Nascimento Elias
Pesquisadora e palestrante em Literatura Comparada
Docente pós-graduada em Letras
Escritora e artista plástica 
carmemteresaelias@hotmail.com