UM OUTRO BREVIÁRIO: A propósito do "Breviário Amoroso de Sóror Beatriz" de Maria Mortatti / Por Antonio Manoel dos Santos Silva

Breviário Amoroso de Sóror Beatriz é o título do livro de Maria Mortatti, publicado em 2019 pela Editora Patuá. A primeira vez que li o título, me vieram à mente algumas referências: o Breviarium Monasticum dos monges beneditinos, o livro de Roland Barthes, Fragmentos do Discurso Amoroso, os ensaios de Ortega y Gasset presentes em Estudios sobre el Amor, os poemas místicos de Teresa de Ávila, os poemas de Soror Juana Inés de la Cruz, e, como era de se esperar, a figuração feminina mais relevante da literatura ocidental, a idealizada Beatriz de Dante Alighieri, presença obsessiva em La Vita Nuova, e guia beatífica e luminosa no caminho para a Rosa Mística , em La Divina Commedia. Fui ao lançamento do livro, não só para adquiri-lo, mas também para rever a autora, uma docente da UNESP, conhecida por seus estudos sobre educação. Para mim, que a conhecia por seus trabalhos de educadora, foi uma surpresa descobri-la como poeta.
Mais surpreso fiquei ao ler seu livro e não foi porque está bem escrito, mas porque, conforme diria Mário de Andrade, está milhor escrito; atinge, portanto, um patamar de expressão no qual a linguagem adquire a máxima eficácia possível. Tento mostrar a pertinência desta afirmação, começando por negar ter atingido o alvo com a procura motivada pelo título do livro, o que é próprio àquela pesquisa que busca a presença dos rastros das obras que, como referências imediatas, intuímos instaurarem diálogos possíveis com o texto que vamos ler. Não é qualquer livro de poemas que induz a essa busca. Assim tive oportunidade de visitar textos que há tempos não lia, como os de Barthes, de Ortega y Gasset, de Teresa de Ávila e de Juana Inés, e o Breviarium Monasticum  (Diurnal Monástico), ou mesmo textos que sempre leio, como os dois de Dante acima citados. Assim sendo, o livro de Maria Mortatti (cujo nome comporta um signo que aparece, conforme vou mostrar, como operador poético), começa por garantir sua eficácia quando compele o crítico a essa atividade prazerosa de abrir sua leitura para outros textos, mesmo que alguns desses outros textos neguem seus vestígios. De certo modo o crítico amplia seu universo imaginários que se deixa levar por essas intuições nascidas do livro. Tal amplitude se manifesta em outros aspectos.
Quem é a autora dos poemas contidos no livro? Na capa, está presente o nome poético, Maria Mortatti, que não é todo o nome da autora, Maria do Rosário Longo Mortatti. Mas os poemas são anunciados como sendo de Soror Beatriz, cuja vida monástica está narrada na orelha da primeira capa: são poemas escritos entre 1976 e 1993, poemas que alguém encontrou entre as anotações da rotina da vida religiosa registradas nas páginas de seus diários. O fingimento poético se introduz nessa síntese narrativa. Esse alguém, que teve acesso aos diários da freira, encontrou os poemas e os ordenou, esse alguém é a Maria Mortatti, de modo que Maria Mortatti edita textos alheios que extraiu de diários. Estamos, pois, diante de um fingimento (ficção) literário de longa tradição na literatura. O leitor do Breviário Amoroso fica se perguntando: que razões leva uma autora a se distanciar, fingidamente, de sua produção, graças ao uso dos velamentos (pesquisadora que mexe em diários, que descobre poemas, que os põe em ordem segundo uma unidade temática, que os edita)? Afinal, quem é a poeta: a editora, a pesquisadora, a monja? Suponho que seja a Maria Mortatti, que se multiplicou, dramaticamente, em personalidades distintas que ora se separam, ora se fundem. Em Seven Types of Ambiguity  (Sete tipos de ambiguidade), Wiliam Empson tratou com pertinência desses desdobramentos literários. Se ele não os elucidou totalmente, eu, que não sou teórico, muito menos. Por isso, aceito o fingimento criado por Maria Mortatti e passo a comentar o Breviário.
Sugeri mais acima que o livro de Maria Mortatti se vale do Diurnal Monástico (Breviarium Monasticum) como guia orientador da ordem dos poemas. O leitor que conhece breviários ou que já ouviu falar deles, fica movido pela expectativa categórica de encontrar no livro da poeta aqueles elementos próprios do culto religioso. Essa expectativa categórica se satisfaz quanto à ordem e a denominação das partes que compõem o conjunto. No livro inventado pela poeta, encontramos as “Horas maiores” (Matinas, Laudes e Vésperas) e as “Horas menores” (Prima, Tércia, Sexta, Noa e Completas), na seguinte ordem: I – Matinas; II -Laudes; III – Prima; IV - Terça; V - Sexta; VI – Noa; VII – Vésperas: VII - Completas. Mas, a Maria Mortatti oferece como bônus uma parte final que constitui uma intrusão de autora, a parte intitulada “Rosário” (p.67-75 ou 76), o que me pareceu uma imposição da vontade pessoal, que resolveu jogar um cisco no olho dos que, desde há algum tempo, querem afastar o autor de sua criação. Além dessa intromissão autoral, que cria uma tensão entre a estrutura do Breviário religioso e a composição do livro, já que o rosário não costuma constar em parte alguma do Diurnal Monástico, encontramos tensão poética mais relevante. É a que se estabelece com os conteúdos discursivos, que rompem com a expectativa categórica, pois esses conteúdos se voltam para o amor profano e não para o amor místico, para este amor que os hispânicos costumam qualificar de “amor a lo divino”.
Se eu interpreto corretamente, a poeta instaura duas instancias de significado, a que anuncia nos títulos e subtítulos e a que enuncia nas diferentes partes e nos poemas que as constituem. Este jogo de reverberações inversas começa com a repetição do título do livro no texto de abertura (páginas 13 a 15), que constitui uma antecipação resumida do que leremos a seguir. Mas é uma antecipação falsa, pois nenhum dos oito subtítulos repercute nas oito partes do Breviário, ainda que já contenham os sinais do caráter profano que animará o discurso amoroso, o que fica abertamente enunciado em todos os versos dos oito subtítulos e às vezes sem restrição nenhuma determinada pelo pudor, como acontece no quinto verso de “II-Laudes”; e o sabor de tua língua em meus grandes lábios (p. 13).
O que o leitor espera encontrar em orações das Matinas (as orações que se rezam durantes as horas da madrugada em vigília)? Esperam-se salmos, antífonas, cânticos, etc,, de elevação espiritual, com que se prepara o espírito para as vicissitudes ou os trabalhos do dia. Mas a Matinas de Maria Mortatti intitula-se Poética (p. 19), isto é um poema sobre sua concepção de poesia, uma poética tanto explicativa quanto, simultaneamente, programática, que sintetiza, por meio de metáforas e símbolos, os motivos dominantes que reaparecerão nas demais partes (Laudes, Prima, etc.). Tais motivos têm como eixo o amor, ou melhor a experiência amorosa. Não encontraremos, portanto, teorizações ou tentativas de teorizações sobre o Amor e sobre suas formas de manifestação, mas, sim, sobre a experiência vivida de amar, desde o enamoramento imprevisto até o sentimento da falta e da necessidade de satisfação sexual, passando pelos “domésticos venenos” (v. Prisão Domiciliar) e pela recusa das leis e dos estigmas impostos às mulheres ou a elas aplicados (v. Desabafo) e até afrontando, com a ambiguidade expressiva da metamorfose litúrgica, a sacralidade dos sacramentos (v. Antropofagia). A escolha poética de Maria Mortatti, é a do amor como experiência humana. Como essa experiência, que é a de uma relação finita entre seres finitos, se faz segundo uma variedade grande de modalidades, o livro contém o reflexo dessa diversidade na constituição formal dos poemas, o que torna coerente o uso de medidas velhas como a glosa e o canto coral, ao lado de construções modernas que se valem da imitação de formas forâneas e do uso do chamado verso livre em que o ritmo não se reduz às sequência dos acentos de intensidade. Deixo para um segundo artigo, minha análise sobre este aspecto essencial da poesia, ou seja, a forma como instância do conteúdo. 

Antonio Manoel dos Santos Silva

(Fonte: Vitrine Literária / São Paulo, 30/12/2019)


Maria Mortatti (Araraquara/SP), mestre e doutora em Educação, professora titular e pesquisadora na Unesp, campus de Marília. Além de "O breviário amoroso", tem publicado um outro livro de poesia, "Mulher umedecida", e vários outros na área acadêmica, tendo conquistado o primeiro lugar no Prêmio Jabuti de 2012 (Educação) e sido finalista no mesmo Prêmio em 2015.