El País - 10/09/2018 |
Caio Fernando Abreu foi repetidamente o que não se podia ser. Gay e crítico da ditadura nos anos setenta e oitenta. Doente de aids nos anos noventa. Teve outros traços, e esses mencionados não são nem equiparáveis entre si nem estão unidos por um fio condutor, mas compartilham uma ideia central. Uma ideia que só foi ganhando força desde 1996, quando Caio morreu aos 47 anos e começou a ser interpretado e reinterpretado por várias gerações de jovens – quase sempre jovens – que se debruçaram sobre seus textos uma e outra vez e que lhe foram buscando um lugar entre nomes cada vez maiores da literatura brasileira do século XX. A ideia de que Caio Fernando Abreu foi o que foi, publicamente, obstinadamente, ostentosamente, mesmo que a sociedade não o deixasse ser assim.
Abreu voltou à atualidade nos últimos dias. Completam-se 70 anos de seu nascimento, em Santiago (Rio Grande do Sul), a chamada “terra dos poetas”. E a Companhia das Letras publica um compêndio de todos os seus contos, o formato em que Abreu mais brilhou e com o qual mais contribuiu à literatura brasileira. E nesse tempo a cultura geral evoluiu. Os mundos LGBTQI, o pop e crítico em relação à autoridade que ele representou já não são tão underground nem contraculturais como antes; ao mesmo tempo, o mundo vive obcecado com a individualidade e a identidade – e sobre isso a obra de Caio também é um manancial. Por isso, este é um momento tão fascinante e perigoso para falar da relevância atual deste homem magro, de cabelo escuro e olhar de quem sempre está pensando em algo, às vezes com óculos, jovem – quase sempre jovem; o qual em tempos de punk foi terno, queer em mundos militares e doente em épocas de euforia; o colunista, cronista, dramaturgo, contista, romancista e, cada dia mais, tesouro nacional brasileiro Caio Fernando Abreu.
Primeiro o apropriado. Se em sua época seus maneirismos pop confundiram a crítica e a fizeram pensar que estava ante um artista menor, hoje se entende a envergadura política de suas obras. “Devido a todas as mudanças políticas que vivemos no Brasil, sobretudo após as passeatas de 2013, com mais e mais vozes no debate e com toda uma literatura que tem repensado a ditadura brasileira, um Caio mais interessante talvez esteja emergindo”, afirma Schneider Carpeggiani, editor da revista cultural Pernambuco e da editora Cesárea. “Estamos olhando para a relação da sua literatura com a ditadura, um trauma de geração que percorre seus livros até quando ele não é explicitado. Um trauma que é escrito algumas vezes por subtração. Vivemos um momento em que a literatura brasileira, por pura contingência, repensa sua relação com a ditadura. E essa política da época também nos faz olhar melhor, aceitar melhor, as nuances queer da sua literatura, as nuances bicha-louca e irônica da sua escrita”.
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