Lei Rouanet: produtores avaliam mudanças apresentadas pelo Ministério da Cultura

O GLOBO - Leonardo Cazes - 22/03/2017 | 

De instrumento fundamental para o financiamento da cultura brasileira a legislação impossível de ser cumprida. Produtores ouvidos pelo GLOBO divergem sobre a Lei Rouanet, mas defensores e críticos concordam que mudanças eram necessárias. O ponto positivo apontado por todos é a maior transparência, da apresentação do projeto à prestação de contas, trazida pela nova Instrução Normativa, apresentada ontem pelo ministro da Cultura, Roberto Freire. Contudo, alguns produtores ressaltam que o teto para cachês pode inviabilizar algumas produções.

Renata de Almeida, diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, acredita que a reforma era necessária e vê a prestação de contas como o principal gargalo:


— Na Lei Rouanet temos que ficar com os papéis por dez anos. Temos um galpão inteiro alugado só para guardar notas. Tudo o que vem para democratizar e facilitar os processos é bem-vindo. Quanto mais burocrático, mais custo vai gerar e pior vai ser — afirma Renata.

Sobre este tema, Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), destaca que a prestação de contas on-line, em paralelo à execução, permite que o proponente encerre o projeto com as contas fechadas. Barata aponta outra boa notícia para os produtores:

— A melhor notícia é que o valor de cada item poderá ser alterado dentro de um limite de até 50%, sem autorização prévia do ministério. No ato da inscrição dos projetos, estamos inseridos numa realidade econômica. Na execução, geralmente passado, no mínimo, um ano, a realidade do país e do setor cultural, certamente, já possui outra configuração.

Diretor do Instituto Itaú Cultural, observa que "antes tínhamos vários entendimentos do TCU e do MinC sobre o que era ou não como contrapartida":

— Pela primeira vez teremos uma declaração do que é ou não permitido. Isso também é uma aposta na transparência. As exigências aumentam, mas a transparência também é maior. Agora, vamos ter uma curva de aprendizado. É preciso que o MinC esteja atento a isso. As melhorias vão vir, mas elas acontecem com a prática.


TETO PARA PROJETOS E CACHÊS

As novas regras também trazem o limite de R$ 10 milhões para os projetos, que será ampliado em 50% caso eles sejam realizados nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Os cachês de artistas e modelos solo não poderão exceder R$ 30 mil, enquanto a remuneração de grupos ficará limitada a R$ 60 mil. No caso das orquestras, o valor será de R$ 30 mil para o maestro e R$ 1,5 mil por músico. Esse teto já tinha sido estabelecido pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) em 2013. Renata Borges, produtora de musicais como “Cinderela” e “Peter Pan”, vê problemas.

— O teatro musical tem necessidades especiais. Temos maestro, orquestra. O teto de R$ 10 milhões não faz a conta fechar. Um projeto que ficará seis meses em cartaz pode precisar de mais do que isso. Cada caso deveria ser analisado individualmente — questiona a produtora. — Esse teto pode ser ampliado para projetos voltados a regiões como Nordeste, mas e os teatros de lá? Há funcionários suficientes? Todos nós queremos viajar, mas como fazer? O buraco é mais embaixo.

Para Carla Camurati, cineasta e ex-presidente do Teatro Municipal, o teto dos cachês pode atrapalhar a música clássica.

— Uma ópera, por exemplo, precisa de uma voz específica, alguém especial. Nesse caso, pode ser um problema. Enfim, o dia a dia vai mostrar os problemas, mas só o fato de o ministério estar se propondo a realizar transformações é algo bom. Antes, estava difícil para todo mundo — diz Carla.

Nem todo mundo crê que as mudanças farão diferença. Manoel Poladian, empresário responsável pela produção de grandes shows nacionais e internacionais, é firme:

— Essa lei nasceu morta tecnicamente, ela foi feita sem nenhum zelo e é, desde o início, inexequível. Ela faz exigências irreais e nenhum contador, por mais mágico que seja, consegue aplicá-la corretamente. Usei a Rouanet uma vez só, há mais de 20 anos, e acabei tendo prejuízo. Ela só dá certo para aquele cara que faz festa de casamento do filho, é uma lei muito propícia a fraudes. Agora, ela vai virar uma colcha de retalhos para se tentar corrigir o que está errado. O governo está bem intencionado, mas não adianta estabelecer o valor dos cachês, cada artista é um artista, e cada evento é um evento. Melhor era revogar a Rouanet e criar outra lei que proíba abusos, como o dos patrocinadores que usufruem dos convites para fazer política de relacionamento com os seus clientes.

SEM IMPACTO NA LITERATURA

As mudanças não devem afetar as festas e feiras literárias. Os organizadores explicam que os eventos, hoje, já estão enquadrados abaixo do teto estabelecido pelas novas regras. Tatiana Zaccaro, diretora do Núcleo Bienal na Fagga/GL Events Exhibitions, que realiza a Bienal do Livro do Rio junto ao Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), disse que o evento recebeu as alterações com tranquilidade, pois utiliza a lei federal de incentivo à cultura há muito tempo e nunca teve problemas.

— Em relação ao teto para o valor dos ingressos, a Bienal já tem uma entrada compatível com a renda familiar média, pois o intuito é possibilitar o acesso a um extrato maior da sociedade carioca. Além de receber gratuitamente mais de 170 mil alunos por meio do programa de visitação escolar, professores, educadores, profissionais do livro e autores também têm acesso gratuito ao evento — explica Tatiana.

A Associação Casa Azul, que realiza a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), informou, em nota, que já está adequada às novas regras, pois oferece ingressos a preços populares e tem cotas de gratuidade, além de orçamento inferior ao teto estabelecido. Por ser uma entidade sem fins lucrativos, a Casa Azul afirma que “reinveste toda e qualquer receita excedente em suas próprias atividades culturais”.

Já Afonso Borges, idealizador e curador do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), destaca que o grande diferencial da nova regulamentação apresentada pelo MinC é buscar redistribuir geograficamente os recursos da Lei Rouanet.

— Isso nunca foi tentado antes. E mais: o olhar dedicado do ministro Roberto Freire à questão do livro e da leitura pode fazer diferença na sua gestão — afirma Borges.

Ler Mais: O GLOBO