Recebo com satisfação a confirmação de que duas obras da Scortecci Editora foram agraciadas entre as melhores do ano pelo crivo de avaliação da diretoria da UBE-RJ: Tempos Modernos, de Zuleika dos Reis e Carlos Drummond de Andrade: do verso à filosofia, de Regina Vieira. O primeiro trata-se de um livro de poemas, alguns ácidos e cruéis, objetivos, muito certeiros e lúcidos, mediados com uma riqueza metafórica digna, ao trazer à reflexão do leitor um retrato atento e necessário sobre descaminhos humanos no mundo atual. Poemas curtos, diretos, criteriosos e impactantes, como deve ser uma boa literatura. Zuleika dos Reis nos deixa em alguns momentos com aquela sensação de pelica com se pode acertar não só a face como o coração do leitor consciente e crítico: “no palco/ a máscara do riso/ e a máscara do pranto/ trocam de máscara/ e tudo dá no mesmo”. Numa época em se exacerba o culto à imagem e o disfarce solitário dos incômodos, Zuleika rompe a farsa das mentiras pessoais e sociais.
Regina Vieira nos traz
uma análise literária e filosófica inédita sobre a obra de Carlos Drummond de
Andrade. Regina, pesquisadora pós-doutora em Literatura, não se atém às já
cansativas discussões sobre o modernismo ou teorizações acerca da prosa poética
em Drummond. Ela vasculha entendimentos
acima das tradicionais discussões acadêmicas e canônicas ao inserir a arguta composição drummondiana nos domínios
mais profundos dos questionamentos filosóficos manifestados pelo eu-lírico no
domínio do amor e suas manifestações. Em filosofia, o amor compreende o
sentimento que conduz uma pessoa a elaborar o que se lhe afigura o arcabouço
dos conceitos de belo, digno ou grandioso. Desde as abordagens da Nova Acrópole
no berço da filosofia na Grécia, Sócrates e seu sucessor Platão vislumbravam o
amor como caminho, sentido, coerência e elo da humanidade com o humano e o
divino, corpo e alma, emoção e razão: uma chave para a perfeição. Neste aspeto ouso
destacar um dos versos mais categóricos, metalinguísticos e metafísicos, de
Drummond:
“Não há criação nem
morte perante a poesia…
Chega mais perto e
contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces
secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem
interesse pela resposta,
pobre ou terrível
que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
Regina Vieira nos entrega uma chave interpretativa em que o amor na poesia se apresenta como conexão e comunicação capaz de oferecer caminhos (com ou sem pedras) que atravessam o vazio existencial das necessidades da matéria e do invisível reduto dos desejos humanos. O estudo de Regina analisa em Drummond como sua poesia reflete quatro manifestações do sentimento: Amor Philos, cujo objeto recai em atenção à compreensão dos sofrimentos dos outros; o amor Ágaphe, superior e sublime, incondicional ou envolto na família; o amor Sophia, que impulsiona a humanidade rumo ao conhecimento e evolução; e o amor Eros, em forma de desejo erótico.
E agora José? Eis o
objeto central que conjuga o livro de Zuleika ao de Regina. Ambos abordam o
amor e denunciam a falta de amor que assola o ser humano, um José homem
qualquer, qualquer um de nós, que até agora carrega o peso do mundo em suas
mãos solitárias. Por José e a um homem qualquer, lembremos o José bíblico, homem
simples, comparável a um operário da carpintaria, que recebe em seu braços o
peso de acolher como pais o filho de Deus. Havia para ele uma promessa se
salvação pelo amor, o que não se cumpriu ainda até ao homem do mundo moderno.
Escreve Drummond: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era
Deus/se sabias que eu era fraco.” José, Raimundo, eu, você, todos nós… rei do
mundo é apenas rima e não soluções. Soluções não há nem nos poemas de Zuleika
nem em Drummond. Contudo as duas autoras agregam seus pensamentos críticos ao
grito mais humano possível na literatura: um clamor para que abram os olhos e a
atenção aos empecilhos, sejam pedras ou muralhas, que retiram do ser humano um
verdadeiro expurgo dos vícios sociais de abandono, solidão e descaso com o
outro. Qualquer solução concreta, poética ou filosófica perpassa acima de tudo
pelas mãos do amor.
Literatura mesmo é um
pensar profundo do mundo e da existência humana. Atemporal. Universal. Um tapa
sem pelica na indiferença e no cada um por si dos contextos de poder e mercado.
A literatura de fato nos amarga e nos abraça, simultaneamente, porque rompe e
arranca de nós, leitores, o lacre da indiferença, do desconhecimento, do lugar
comum, da aceitação inocente das mazelas do ser e do viver. A literatura nos
acorda e nos pergunta: se entendeste que a tua infelicidade tem raízes na
infelicidade de Josés, procure a chave da vida no amor com que lês o dia a dia
do mundo antes que tua própria vida seja também apenas um Raimundo sem solução.
Não há rima para a literatura se não houver leituras sérias e construtivas como
a desconstrução de ilusões dos poemas de Zuleika e um empenho de amor em seus
quatro termos apontados por Regina na universalidade da poesia Drummondiana.
Textos puramente de
entretenimento servem apenas para a preservação da inoperância e da apatia, uma
esperança distorcida de que alguma felicidade virá unicamente da crença sem
ações, das palavras vazias, das grades
do eu circundado de solidão cega. A chave está, não escondida, mas à mostra,
nas leituras com que esses dois livros nos iluminam.
Carmem Teresa Elias
Docente de Letras
Pesquisadora e palestrante em Literatura Comparada e
Gêneros Textuais
Crítica literária,
escritora e artista plástica
CEO da Casa da Escrita
carmemteresaelias@gmail.com