O ponto de partida dessa análise é a lei brasileira de direito autoral, Lei nº 9.610/98, doravante LDA. Ali estão especificados os principais direitos patrimoniais do autor, isto é, os de exploração econômica da obra (“Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”).
Também constam da LDA os direitos morais do autor, os que mais interessam no momento, e são os seguintes: “Art. 24. São direitos morais do autor: I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; III – o de conservar a obra inédita; IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”).
Importante registrar que o parágrafo 1º desse artigo 24 estipula claramente: “§ 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.”
Apenas para complementar os conceitos, o art. 27 da LDA ainda estabelece que “Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”.
Numa visão conjunta desses tópicos, temos que o autor de uma obra literária possui o direito moral de conservá-la inédita, não divulgando seu teor, nem contratando sua exploração (art. 24, III), e esse direito expressamente se transmite a seus herdeiros (art. 24, § 1º) .
Assim, se um escritor não divulgou obra de sua autoria, por claro e expresso desejo de mantê-la inédita, esse direito, que era do autor, é transmitido a seus herdeiros – só que nesse caso se transforma numa obrigação dos herdeiros de respeitar o expresso desejo de manutenção do ineditismo da obra.
A pergunta do momento: o fato da produção artística do falecido ingressar em domínio público – 70 anos posterior à morte do autor, previsto no art. 41 da LDA – permite que a partir desse fenômeno possa ser divulgada obra deliberadamente mantida inédita pelo autor? Os direitos morais do autor (autoria, vinculação do nome a obra, manutenção de sua integridade, imagem), dentre eles o de conservar inédita obra por ele criada, correspondem a uma exteriorização da sua personalidade.
Esse direito moral de manutenção do ineditismo de determinada obra, então, se sobreporia ao ingresso em domínio público de toda a sua criação publicada.
Dessa forma, não só os herdeiros teriam a obrigação de manter a obra inédita, como poderiam se opor à sua publicação por terceiros, mesmo após o prazo de ingresso em domínio público.
Por outro ângulo. O desejo do autor de manutenção de obra inédita impediria que ocorresse a situação de sua livre publicação, mesmo pelos seus herdeiros, após o ingresso em domínio público.
Essa situação difere da publicação de manuscrito do autor falecido, localizado num fundo gaveta, ou encontrado no seu computador, sem nenhuma anotação ou determinação de ineditismo.
Reforça o entendimento que se está expondo pela simples referência ao conceito de publicação da LDA, constante do art. 5º, I: “publicação – o oferecimento de obra literária, artística ou científica ao conhecimento do público, com o consentimento do autor, ou de qualquer outro titular de direito de autor, por qualquer forma ou processo”.
Fica a questão, que, a meu ver, conforme a LDA, se inclina pela manutenção do desejo do autor de não publicar a obra que concluiu, por algum motivo, íntimo ou declarado. Ressalvo hipótese de autocensura ou interesse público, que constituem tema paralelo.
Pode ocorrer, também, que o autor tenha expressado o desejo de autorizar a publicação após sua morte, ou, quando da ocorrência de algum evento futuro, por exemplo, na próxima Copa do Mundo.
Ampliando um pouco o alcance do artigo, anoto a diferença entre o desejo de ineditismo e o arrependimento posterior a publicação, este assim previsto no art. 24, VI da LDA: “– o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem”.
Esse arrependimento implica em indenizar terceiros, por exemplo, uma editora que já tenha contratado a publicação da obra, quando for o caso.
A hipótese será analisada mais detidamente em outro artigo, mas desde logo invoco o exemplo de Jorge Amado, que por vontade própria proibiu a reedição do livro “O mundo da paz-União Soviética e democracias populares”. No entanto, a obra pode ser encontrada em sebos.
No mundo da informação, ineditismo e arrependimento são hipóteses raras.
Gustavo Martins de Almeida
é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento.
Seu e-mail é gmapublish@gmail.com