Breve comentário sobre “Prosa de leitora” de Maria Mortatti

Acabei de ler um livro de crônicas, se é que são crônicas os textos que assim estão caracterizados na ficha catalográfica que a Scortecci Editora escolheu para o livro "Prosa de Leitora – Sobre livros, autores e outros acepipes” – vol. 1, de Maria Mortatti. Na apresentação do livro, a autora relata que nele estão reunidos "54 textos selecionados entre os 101" que escreveu "durante 150 noites – de 15 de fevereiro a 15 de julho de 2023" publicados em seus dois blogs.  

Maria Mortatti é poeta, e grande poeta, escritora de contos e crônicas, professora titular na UNESP, campus de Marília. Costuma ser citada como referência em Educação e também como premiada com o Jabuti (2012) pelo livro "Alfabetização no Brasil: uma história de sua história" (Cultura Acadêmica/Editora Unesp). Em 2019, publicou "Breviário Amoroso de Soror Beatriz" (Editora Patuá), sobre o qual escrevi um artigo no portal da Vitrine Literária Editora. Desde aquele ano publicou, pela Scortecci Editora, os seguintes livros: 'Mulher Emudecida", "Mulher Umedecida", "Mulher Enlouquecida", "Amor a quatro mãos "e "O primeiro livro de Arthur". E este sobre o qual faço alguns comentários, talvez impertinentes. 

O livro traz como epígrafe um poema de Cecília Meireles, "Mensagem a um desconhecido". Seria este o leitor do livro? Pode ser, mas pode ser o leitor que a autora desconhece, mas que tem esperança de seduzi-lo com as histórias que conta sobre autores e livros que leu, sobre mulheres, algumas das quais quase desconhecidas hoje. Eu, por exemplo, nada sabia de Lenyra Fraccaroli, nem sabia que Júlia Lopes de Almeida ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras, mas não pôde integrá-la por ser mulher.  

Há acontecimentos neste livro de Maria Mortatti que mereceriam maior destaque de minha parte, por um motivo bem simples que chamo de coincidências: o deslumbramento com as ilustrações de Doré impressas na “Divina Comédia”, cuja primeira tradução em português, em volume enorme, capa dura, guardo até hoje. Também folheei aquele livro, mais interessado nas ilustrações do que propriamente no grande poema, que só iria estudar muito tempo depois. Outra coincidência que me causou surpresa não pelo fato em si mesmo, mas por me remeter ao passado de estudante de Letras que achava estranho o dia 23 de abril de 1616, dia e ano em que faleceram William Shakespeare, Miguel de Cervantes e Garcilaso de la Vega, el Inca. Senti-me vingado com essa referência aos três, não por causa dos dois europeus, mas pelo peruano, que eu, como estudante de literatura hispano-americana, achava injusto não ser lembrado.

Outro acontecimento que me fez voltar no tempo, está no texto "Macunaíma na banheira da Sapucaia". A autora não sabe que a doação da Sapucaia à Faculdade de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara aconteceu graças ao empenho do então Diretor, Cláudio Gomide, que convenceu o Reitor (Antonio Manoel dos Santos Silva) a encontrar-se com Heleieth Safiotti e comprometer-se, caso houvesse a doação, em transformar a propriedade em Centro Cultural. A negociação se fez num jantar no restaurante Dinho’s, em São Paulo. 

Há no livro de Maria Mortatti pequenos relatos de leitura prazerosa, leitura da leitora, como, por exemplo, os que falam de Wander Piroli, de Osman Lins, de Camões, de James Joyce, de Flaubert, de Proust, de Manuel Bandeira, de Machado de Assis. Em alguns deles, a autora entra no cenário e se transforma em ser da narração.  

Porém, há sempre um “porém”, o que mais me agradou neste livro foram os textos sobre as escritoras, principalmente as poetisas. Este começo de "Emily Dickinson; a poesia de uma vida", vale o livro inteiro, porque define o espírito que anima seus, de Maria Mortatti, textos: "Não me lembro exatamente em que circunstâncias conheci a poeta norte-americana Emily Dickinson (...) Mas não me esqueço deste estonteante poema com o qual nasceram para mim sua obra e sua vida: "A word is dead/ When it is said,/ Some say./ I say it just/ Begins to live/ That day. (Uma palavra morre/Quando é falada/Alguém dizia. / Eu digo que ela nasce/ Exatamente / Nesse dia.")

Antonio Manoel dos Santos Silva
Poeta, escritor, crítico literário e professor emérito da Unesp – Universidade Estadual Paulista

PROSA DE LEITORA / Maria Mortatti
ISBN 978-85-366-6563-4
Scortecci Editora - Crônicas
Formato 14 x 21 cm - 2023 - 220 páginas
Preço: R$ 55,00

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