Livros são mananciais de surpreendentes belezas. Entre elas – talvez menos conhecida – estes tesouros ocultos: pinturas na borda frontal – borda aberta, oposta à lombada –, que se revelam quando o bloco de folhas é pressionado ou ventilado, segurando-se entre os dedos ou numa prensa de exibição, como em sequência de desenho animado. Para se obter esse efeito, a pintura em aquarela é aplicada nas bordas das páginas, com o bloco de folhas levemente espalhadas; após a pintura, a borda frontal é recoberta de dourado ou marmorizado para ocultar resquícios da imagem. Uma forma mais simples consiste em pintar com o livro fechado, deixando a imagem aparente.
A técnica remonta aproximadamente ao século X, e era usada com finalidade de identificação, como símbolos, brasões ou retratos dos proprietários. O desenvolvimento e aprimoramento de técnicas de fabricação do papel e de impressão impulsionaram a produção de livros mais finos, possibilitando serem guardados na vertical, com título na lombada, deixando vazia a borda frontal – especialmente de livros grossos –, que pôde ser ocupada por desenhos ou pinturas, muitas vezes representando cenas do conteúdo do livro. O primeiro exemplo conhecido de uma pintura em borda frontal data de 1649, mas foi no século XVIII que esse tipo de pintura com finalidade ilustrativa se expandiu na Inglaterra, impulsionada pela empresa de encadernação Edwards de Halifax, que contratou artistas para pinturas originais nas bordas de livros e se esmerou na produção de edições com encadernação luxuosa. No século XX, a técnica se expandiu, incluindo pinturas em bordas duplas – duas pinturas diferentes, uma visível com as páginas em leque para a frente, e a outra, com as páginas em leque para trás – e pintura contínua/panorâmica, nas três bordas do livro – superior, inferior e frontal –, formando o entorno do livro. Mais recentemente, a técnica da pintura oculta na borda frontal vem sendo adaptada e utilizada em livros em miniatura com menos de três polegadas de altura. E é também utilizada por alguns artistas contemporâneos, como o "artesão de livros" inglês Martin Frost – um dos mais conhecidos –, que cria pinturas de borda única, dupla e tripla.
A maioria dos exemplos existentes dessas pinturas – grande parte delas não assinadas – data do final do século XIX e início do século XX, em reproduções de livros originalmente publicados no início do século XVIII, como a pintura na borda frontal da “Jerusalem delivered” (“Gerusalemme liberata”) – poema épico do italiano Torquato Tasso, de 1591 – traduzido pelo inglês John Hoole, em 1797. Há coleções preservadas em bibliotecas universitárias e públicas, como as localizadas nos Estados Unidos da América do Norte: a Biblioteca Earl Gregg Swem do College of William and Mary, que contém a maior coleção da América, com 709 pinturas de borda frontal; e a Biblioteca Pública de Boston, com uma coleção de 258 pinturas. E há também informações e exemplos em sites e vídeos disponíveis na Internet, além de indicações de alguns livros de referência sobre o assunto, que despertam curiosidade e desejo de ter em mãos um desses livros, para folheá-lo e vivenciar a fascinante revelação.
Livros são, de fato, mananciais de surpreendentes belezas. Sem limites. Até em suas bordas, artistas pintam e bordam. E esses tesouros ocultos, raros e fascinantes nos recordam, mais uma vez: é preciso saber ver, para poder apreciar e usufruir as infindáveis belezas de letras e imagens que só se revelam quando o livro é aberto.
Maria Mortatti