Em “O importuno” (1898), óleo sobre tela de Almeida Júnior, um pintor afasta a cortina do ateliê quando, presume-se, alguém bate à porta. A bela modelo, surpreendida, esconde-se, o vestido arrepanhado na altura das coxas, como se em inconsciente defesa do sexo. Não há peças íntimas à mostra, não há nudez, mas sente-se erotismo no ar: podemos supô-los amantes, flagrados talvez por um ciumento marido...
O pecado mora ao lado (1955), título em português do filme The seven year itch, do diretor Billy Wilder, é célebre por uma cena de explosiva octanagem erótica, capaz de mandar pelos ares o prédio de apartamentos em que se passa a história: convidada pelo vizinho de baixo para descer e tomar um drinque, ninguém menos do que Marilyn Monroe lhe pede, na varanda, que espere um pouco: é que costuma, em dias quentes como aquele, deixar a calcinha na geladeira... Nada mais do que isso, o bastante, porém, para sonhá-la pondo a lingerie, chega-se a imaginar o prazer do frescor na intimidade feminina...
Essa, a natureza da expressão poética de Maria Mortatti: delicada, sugestiva, permeada por referências literárias como a que evoca Daniel Defoe em “Marquise”, no Breviário amoroso:
Pouco a pouco, línguas exercitando-se em túmida solidariedade,
cada um de nós, crusoés torturados pela solidão,
apodera-se do outro, sextas-feiras prenhes de submissa gratidão.
Ou à luz de ressonâncias bíblicas que dão solenidade ao profano em “Mistérios gozosos”:
Nem mal, nem bem,
apenas dito
(que é do verbo que se faz a carne),
fruto que sou
de anúncio de anjo
despencado do céu
com a fúria de lança
que se vinga no ventre da terra
depois da briga com deus.
Mulher umedecida mantém a voltagem poética, a exemplo de “Com a seiva nas veias”:
Os olhos negros dele
esparramam sobre mim
seus anseios subterrâneos,
vasculhando os meus na escuridão.
No “Poema da espera”, a invenção do verbo brisar refresca a boca feito bala de hortelã:
Admirarei seu corpo,
suspirarei de paixão.
Quando se aproximar,
pele roçando pele,
lábios brisando lábios,
hesitarei e fingirei fugir,
só para ouvir ameaças de abandono.
“Orgia almiscarada” encanta pela primorosa cadência dos versos, a expressar em ritmo o desejo com que homem e mulher um ao outro se dão para fazer-se um:
Adentrando o portal
da alameda rubra
a alma cai em tentação
derretendo-se com calma
na ponta da língua
nas bordas do corpo
e vibra, atrevida,
na orgia almiscarada
de cores e notas
da despalavreada canção.
Essa, a criação poética de Maria Mortatti, plena de força e de vida, pelo saber e pela competência com que transforma o erotismo em literatura da melhor qualidade.
Edmílson Caminha