O EROTISMO NA CRIAÇÃO POÉTICA DE MARIA MORTATTI / Por Edmílson Caminha

O erotismo na literatura é um perigo: poetas e prosadores menores que a ele se disponham estarão sempre a um passo do chulo, do grosseiro, do vulgar. Se grandes escritores, farão poemas e contarão histórias para o deleite de quem aprecia o gênero, pela força com que despertam a imaginação e alimentam a fantasia. A esse grupo seleto pertence Maria Mortatti, autora do Breviário amoroso de Sóror Beatriz (São Paulo : Patuá, 2019) e Mulher umedecida (São Paulo : Scortecci, 2020). Poesia de primeira, em que se percebe a essência da criação erótica: insinuar mais do que dizer, sugerir mais do que mostrar, seja na literatura, nas artes plásticas ou no cinema.

Em “O importuno” (1898), óleo sobre tela de Almeida Júnior, um pintor afasta a cortina do ateliê quando, presume-se, alguém bate à porta. A bela modelo, surpreendida, esconde-se, o vestido arrepanhado na altura das coxas, como se em inconsciente defesa do sexo. Não há peças íntimas à mostra, não há nudez, mas sente-se erotismo no ar: podemos supô-los amantes, flagrados talvez por um ciumento marido...

O pecado mora ao lado (1955), título em português do filme The seven year itch, do diretor Billy Wilder, é célebre por uma cena de explosiva octanagem erótica, capaz de mandar pelos ares o prédio de apartamentos em que se passa a história: convidada pelo vizinho de baixo para descer e tomar um drinque, ninguém menos do que Marilyn Monroe lhe pede, na varanda, que espere um pouco: é que costuma, em dias quentes como aquele, deixar a calcinha na geladeira... Nada mais do que isso, o bastante, porém, para sonhá-la pondo a lingerie, chega-se a imaginar o prazer do frescor na intimidade feminina...

Essa, a natureza da expressão poética de Maria Mortatti: delicada, sugestiva, permeada por referências literárias como a que evoca Daniel Defoe em “Marquise”, no Breviário amoroso:

 

Pouco a pouco, línguas exercitando-se em túmida solidariedade,

cada um de nós, crusoés torturados pela solidão,

apodera-se do outro, sextas-feiras prenhes de submissa gratidão.

 

Ou à luz de ressonâncias bíblicas que dão solenidade ao profano em “Mistérios gozosos”:

 

Nem mal, nem bem,

apenas dito

(que é do verbo que se faz a carne),

fruto que sou

de anúncio de anjo

despencado do céu

com a fúria de lança

que se vinga no ventre da terra

depois da briga com deus.

 

Mulher umedecida mantém a voltagem poética, a exemplo de “Com a seiva nas veias”:

 

Os olhos negros dele

esparramam sobre mim

seus anseios subterrâneos,

vasculhando os meus na escuridão.

 

No “Poema da espera”, a invenção do verbo brisar refresca a boca feito bala de hortelã:

 

Admirarei seu corpo,

suspirarei de paixão.

Quando se aproximar,

pele roçando pele,

lábios brisando lábios,

hesitarei e fingirei fugir,

só para ouvir ameaças de abandono.

 

“Orgia almiscarada” encanta pela primorosa cadência dos versos, a expressar em ritmo o desejo com que homem e mulher um ao outro se dão para fazer-se um: 

 

Adentrando o portal

da alameda rubra

a alma cai em tentação

derretendo-se com calma

na ponta da língua

nas bordas do corpo

e vibra, atrevida,

na orgia almiscarada

de cores e notas

da despalavreada canção.

 

Essa, a criação poética de Maria Mortatti, plena de força e de vida, pelo saber e pela competência com que transforma o erotismo em literatura da melhor qualidade.

Edmílson Caminha