BEIJOS ROUBADOS DE CORA CORALINA E RACHEL DE QUEIROZ / JOÃO SCORTECCI

O dia em que tudo aconteceu. O beijo roubado de Anna Lins! Não foi lá nos Becos de Goiás e nem nas águas do Rio Vermelho. Foi no dia em que Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985) perdeu o medo e virou “Cora Coralina”. Moça linda - cheia dos versos - que no dia 20 de agosto de 2021 completou 132 anos de idade. Era o ano de 1983, na sede da União Brasileira dos Escritores, quando da entrega do Prêmio Juca Pato - Intelectual do Ano. Eu, pequenino; e ela, gigante! Curvei-me quase meio metro para que ela pudesse me roubar um beijo. Poucas mulheres já ganharam o valioso troféu do Juca Pato, promovido pela UBE. Foi Cora Coralina quem puxou a fila. Depois, vieram Lygia, Rachel, Pallottini e Belinky. Foi a escritora luso-brasileira, Dalila Teles Veras, que - contra tudo e todos - lançou a candidatura de Cora Coralina e, a duras penas, conseguiu listar as 30 assinaturas necessárias para o pleito. Uma mulher ganhando o Juca Pato - e uma poeta? Era muito! Foi um momento de ruptura importante na entidade e que marcou época. Repeti o mesmo beijo roubado em 1992, dessa vez de Rachel de Queiroz (1910-2003), conterrânea e amiga da família. Meu avô paterno, João Batista de Paula (o Batista da Light), era da cidade de Quixadá, no Ceará, e na infância e adolescência haviam sido amigos pelo resto da vida. Rachel perguntou: “Você é neto do Batista da Light?” “Sou, sim”, respondi. “Saudade dele. O Batista era muito querido e estava sempre alegre e sorrindo", sentenciou. Rachel de Queiroz estava sentada confortavelmente em uma poltrona na sala da diretoria da UBE, da Rua 24 de maio, 250, aguardando o início da cerimônia. Curvei-me e a beijei também com todo o amor do mundo. Foi o nosso último encontro. Logo depois, Rachel adoeceu e morreu em 2003, na cidade do Rio de Janeiro. Beijos roubados são assim: perigosos, eternos e inesquecíveis.

PARTE 2

Tudo acontece em Goiás. Até o nada. O de ficar ali se olhando - demoradamente - feito vasto mundo. Drummond lhes disse: “Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro... Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia.” Hoje acordei pensando na Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, 1889-1985). Olhos miúdos, sorriso fácil de bom e coração de doceira competente. É hoje, né? Sim. Parabéns! Ela e os Becos de Goiás. Ela e o povo do Rio Vermelho. No nosso único e derradeiro encontro, isso no ano de 1983, na entrega do Troféu Juca Pato, da UBE, merecidamente justo e ganho por você. Veloz e inesquecível. Veio e ficou assim: “Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, Descendo de quintais escusos sem pressa; e se sumindo depressa na brecha de um velho cano. Amo a avenca delicada que renasce; Na frincha de teus muros empenados; e a plantinha desvalida de caule mole, que se defende; viceja e floresce no agasalho de tua sombra úmida e calada.”

20 DE AGOSTO DE 2021