A CONCISÃO EXPRESSIVA DE JOÃO SCORTECCI – NA LINHA DO CEROL / Por FÁBIO LUCAS

Livro: Lições de Literatura Nordestina / Fundação Casa de Jorge Amado. Sobre a obra poética: Na Linha do Cerol – Reminiscências, de João Scortecci. 

Na Linha do Cerol apresenta a mais homogênea coletânea de poemas de João Scortecci, considerada a unidade temática que a preside. O subtítulo diz tudo: "Reminiscências."
Na verdade, o poeta retoma os valores de iniciação emocional e descreve o despertar do erotismo. Poderíamos dizer que as unidades da coletânea, que se denominariam “poemas” constituem fragmentos de um grande texto evocativo da infância.
O poema global, de que as composições menores são parcelas, percorre os marcos da formação afetiva do poeta e reúne os sinais da trajetória até o momento da enunciação. Que marcos seriam esses? A natureza e seus elementos, as pessoas e suas relações, formalizados em termos de rememorações. O passado que não passou.
Para concretizar esse percurso como textualidade de um projeto evocativo, o poeta manifesta o rigor de sua opção semântica, dando significado a vocábulos e circunstâncias que contextualizam o ambiente formador da sensibilidade.
O leitor poderá perceber a sobriedade do discurso poético, caracterizado pela concentração de substâncias, mais do que de qualitativos abstratamente nomeados. Com efeito, os adjetivos escasseiam, enquanto os substantivos, aglutinados em cadeia de contiguidade memorialística, formam o suporte das “reminiscências.” O espaço (ambiente natural) é o nordeste (Ceará) e o tempo é a infância/puberdade, povoada de mitos, além dos pais, mestres, amigos e companheiras, que condicionam a apreensão do mundo.
Não é fácil poetizar a infância sem cair nas abstrações convencionais (conceitos) da saudade. O difícil é tornar implícito o sentimento de nostalgia, de modo que aflore como uma camada de luz sobreposta ao texto.
Sob esse aspecto, Na Linha do Cerol procura o reino das metáforas e alusões a um objeto ausente materialmente, mas resguardado como efeito da memória, presença carregada de tradição iniciadora. É no centro desse renascimento emocional que se introduz o desejo galvanizado pelas forças de Eros. Como diz o poeta, “O cerol que puxa o alfenim da memória / sabe do que falo.”
João Scortecci consegue dramatizar a trajetória da busca da identidade nos primórdios da iniciação amorosa. Juntando a arte de empinar papagaios com a manifestação do efêmero da vida, abre assim o poema 47: 

E por que arraia não alçou voo
 Não há respostas
para o passado. 

O conteúdo enunciativo é de forte efeito. A mesma expressão do inexorável se encerra no final do poema 10: “Missão Impossível.” O lance da aventura do homem, arriscada, temerária, aloja-se no poema 15, de rara concentração de imagens. No fundo, meditação sobre os riscos da arte.
O leitor de Na Linha do Cerol haverá de divertir-se com a graça eufemística com que o poeta aborda a pontuação erótica, referindo-se por via transversa à mulher que o atrai. Assim Margarida é “despetalada” no poema 7, “tinha a fruta perfumada” no poema 12, enquanto Teresa “sabia o que fazer com o ferrolho” (poema 33). Naquele meio deserto de oportunidades carnais, “difícil mesmo / era levar a moça para o fuzilamento” (poema 32).
Os meros exemplos invocados denotam o poder de síntese e a capacidade de construção do poeta, cujo trabalho é fruto de demorada convivência com a linguagem lírica, leitor e escritor contumaz que sempre foi.

Fábio Lucas