DIA DO POETA / Ricardo Viveiros

As crises econômicas brasileiras, por diferentes motivos, sempre foram meio desacreditadas pela população que, em cada uma delas, trabalhou duro, criou oportunidades e continuou vivendo o dia a dia. Entretanto, a atual crise sanitária da Covid-19 desta vez está preocupando e fazendo muita gente ficar em casa. E o correto planejamento do dia, gera tempo para leituras, músicas e filmes. Dentre os livros que já reli, Rei Lear, de William Shakespeare novamente me perturbou.
Tanto que perdi o sono em responsáveis conjecturas sobre a vida. Seria a crise assombrando além do limite? Ainda não. O que provocou novas reflexões está no direito de viver a vida e, ao perceber que o seu final está chegando, realmente deixar de trabalhar e curtir, ao máximo, o que ainda pode restar de tempo útil.
Para que entendam minha inquietude, a trama da peça do maior poeta de língua inglesa gira em torno de suposta sábia decisão de um rei em se aposentar para ser feliz. Pois é, ele acreditou ser possível. E abdicou ao trono, passando às três filhas e aos genros tudo o que possuía.
Estabeleceu, no entanto, uma condição. Viveria o resto de seus anos, aproveitando os prazeres possíveis com um séquito de 100 homens armados para proteger-lhe e residindo parte do tempo, proporcionalmente, na casa de cada uma das filhas. Receberia, assim, sua justa "pensão".
De cara, o rei se indispôs com a filha caçula, até então a preferida, que foi sincera ao ouvir a decisão da aposentadoria real. Ele não percebeu o alerta... Revoltado, tirou-a da partilha dividindo o reino em apenas duas partes. Tudo resolvido, dias depois partiu com seu séquito (que incluía um sábio "bobo da corte") para a casa da primeira filha. E aí, como acontece com qualquer um de nós, seus problemas com a previdência começaram...
Mesmo animados pelos programas de motivação criados para a Terceira Idade, essa que alguns ironicamente chamam de "Melhor Idade", todos sabemos que ficar velho não é fácil. Muito mais em um País, como o nosso, que não respeita quase nada. Ainda menos os idosos que causam trabalho e despesa aos que, esquecendo o passado, acham que eles em nada contribuíram para ter um tratamento digno na velhice.
Nas minhas inquietantes constatações geradas pelo texto de Shakespeare, atual aos 415 anos em desafiadora tradução e adaptação para monólogo do poeta brasileiro Geraldo Carneiro, também está a discussão entre Congresso e Governo Federal quanto à sobrevivência de um já moribundo INSS. Quem, como muitos de nós, pagou durante 30 anos suas contribuições mensais sobre até 20 salários mínimos, agora não recebe sequer cinco deles. E o futuro se desenha ainda pior.
Embora começo de tudo, por fim vem o amor. Um sentimento tão nobre, que nos envolve e motiva. Mas, a cada dia, é menos praticado do que aparece no falso discurso de algumas famílias e políticos. Os asilos públicos para a velhice, como as cadeias e penitenciárias, estão superlotados. Os privados se tornaram grandes negócios sob o sarcástico letreiro: "Casa de Repouso". Na verdade, são cemitérios de sonhos, tristes depósitos de frustrações, ansiedades e medos.
Velhos, idosos, "tiozinhos", seja lá o nome que lhes derem, assim como pretendeu o rei Lear bem interpretado por Juca de Oliveira (então com 80 anos) no teatro há cinco anos, não querem um forçado melancólico "repouso". Querem merecer respeito e amor para finalmente, sem tanta responsabilidade com a felicidade dos outros — o que foi a razão de ser de suas longas existências —, ainda alcançar mais algumas alegrias se aposentando do trabalho, não da vida.
Hoje é o Dia do Poeta. Shakespeare foi um dos maiores, aqui no Brasil temos muitos igualmente talentosos: Castro Alves, Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Solano Trindade, Conceição Evaristo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Manoel de Barros, Cora Coralina, Ferreira Gullar, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Adélia Prado, Mario Quintana, Hilda Hilst, Paulo Leminski, Elisa Lucinda, Thiago de Mello, Ariano Suassuna, Jorge de Lima, Raul Bopp, Miriam Alves e João Cabral de Melo Neto. Convivi com alguns deles, uma rara felicidade.
Clarice e João Cabral fariam 100 anos neste 2020. Em novembro próximo, convidado pela Universidade de Lisboa e pela Universidade Lusófona, respectivamente as maiores e mais respeitadas de Portugal no âmbito público e privado, estarei proferindo palestra de abertura do evento "Amores e Desamores", tema central do Seminário Internacional Religião, Arte e Literatura (SIRAL). Minha abordagem: "Arquitetura do tema, engenharia do poema: sonho e realidade na obra de João Cabral de Melo Neto".
Poetas têm o dom de olhar o mundo de modo especial, de nos fazer refletir e entender melhor a vida. Como nos provoca Shakespeare em seu brilhante Rei Lear. Que tenhamos sempre poetas, vida longa a eles e a todos nós!

Ricardo Viveiros é jornalista, escritor e poeta. Membro do Conselho da UBE.