Durante muito tempo a filosofia buscou o elo perdido entre os sentidos e a razão. Esta padece por causa daqueles. Aqueles não subsistem sem esta. Esse hiato tensionado ao longo do tempo produziu um abismo. Tornou-nos incapazes de apreender algo mais imediato, precário e flutuante: a experiência do corpo. Por isso, de Montaigne a Virginia Woolf coube à literatura se incumbir dessa tarefa esquecida: dar voz à voz sibilina e escamoteada do corpo.
Essa experiência do corpo não consiste em refletir sobre os nossos limites. Não se baseia em cultivar ou em cultuar os instintos. Não se concentra na fatalidade e na finitude. Tampouco é uma meditação sobre a morte ou uma ars moriendi, pois isso seria demasiado transcendental. O corpo também não nos ensina os limites do pensamento ou da percepção. A linguagem do corpo nos revela algo mais simples: o que há de mais prosaico em nossa condição de animais e de anfíbios. Habitantes da Terra e oriundos da água, cercados de seres, coisas, humanos e objetos, passamos. Corpo entre corpos, corpo dentro de corpos, corpos e anticorpos, em uma batalha e em uma dança, rumo ao fim.
A poesia de Edith Elek se baseia nesse compromisso com um mundo de seres tangíveis. Nesse sentido, Pedaço de Mim não se escreve nem como metonímia nem como metáfora. Inscreve-se como mereografia: a escrita das partes. Essa escrita ao fim e ao cabo não ambiciona revelar a eventual totalidade da vida da poeta. No caso, Edith. Pretende, sim, mostrar a coextensão entre o corpo, o poema e a vida. Em cada poema se preserva e se armazena o que foi e o que se foi — para sempre. Em sua linguagem-molusco transparente, fluida e viva, estes poemas simultaneamente dissecam a poeta e o leitor. Assim, Edith incorpora uma miríade de sensações, lembranças, afetos, desejos. Grandes prazeres e pequenas tristezas. Tudo cabe neste baú de sublimações, decadências e renascimentos.
A travessia pelo túnel da tomografia, o câncer e a doença, a morte e o orgasmo, o gozo, o sexo e o êxtase se encontram em paridade com os dias de chuva, o domingo de sol e a tarde de sábado, a observação das árvores, os buracos do queijo, o dedão e o útero, retalhos, fragmentos e signos — epifanias. Diferente do que se imagina, essa equipolência entre dimensões existenciais distintas não minimiza o valor de cada circunstância vital. Tampouco anula o sentido de cada afeto, cena ou personagem.
Isso ocorre porque uma das chaves centrais dessa poesia é a ironia. Em sua dicção ambivalente, o sublime e o trivial se tocam, embora não se fundam e não se confundam. A ironia não surge de um perfeito distanciamento. Nasce de uma perfeita proximidade. O olhar vasculha rostos, esmiúça a vida destes buracos suspensos no ar, dobra e desdobra origamis e busca estrelas cadentes. Esse olhar-Miguilim põe e retira todos os tipos de lentes. E essa microscopia é o segredo para a sensação constante de intimização que o leitor experimenta nestes poemas.
Ao mesmo tempo, esse trabalho de miniaturista revela a grandeza do pormenor e a insignificância de toda abstração. Por isso, o poema Passagem é um definidor da poesia de Edith. Arco e lira distendidos entre vida e morte, a experiência do corpo-ausência e do corpo-carcaça não é menos sublime ou singular do que a experiência de sermos uma poeira estelar ou a sombra de um deus. Por meio desta poesia-corpo, observamos o mundo e aderimos às coisas. Observação e aderência tornam-se sinônimos. E em cada um destes espelhos quebrados conseguimos reconstruir uma face que por ventura pode vir a ser a nossa.
Rodrigo Petronio
é escritor e filósofo, autor e organizador de diversos livros. Professor titular da FAAP e pesquisador de pós-doutorado no TIDD|PUC-SP.