Jornal da USP - Marcello Rollemberg - 25/05/2018 |
A amizade de mais de duas décadas entre o professor da USP e crítico Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) e seu parceiro uruguaio Ángel Rama foi daquelas que, mais do que aproximar e unir pessoas com interesses comuns, se mostrou preponderante para arquitetar um projeto de unidade latino-americana a partir da literatura. Quando se conheceram, em 1960, a América hispânica parecia estar de costas para o Brasil – e o Brasil, sem cerimônia, retribuía, como que, além de deitado em berço esplêndido, estivesse isolado no continente. Era como se a tão aclamada latinidad não pudesse colocar uma vogal a mais em seu final e se transformasse, também ela, em latinidade. Brasil e os países de fala espanhola da América Latina estavam apartados. E foi a partir da aproximação entre Candido e Rama que essa distância começou a se desfazer, com a construção de uma ponte metafórica erguida de livros, textos e cultura. “Seja como for, os dois críticos se reconheceram próximos em convicções teórico-críticas, humanísticas e políticas, e viram que era urgente remover as barreiras do desconhecimento recíproco”, escreve o estudioso uruguaio Pablo Rocca no prólogo de Conversa Cortada – A Correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama, coeditado pela Editora da USP (Edusp) e pela Ouro sobre Azul. Trata-se de um livro fundamental para entender como a amizade dos dois críticos se estabeleceu entre 1960 e 1983 – ano em que Rama e sua mulher, a escritora Marta Traba, morreram em um acidente de avião – e como a profícua troca de ideias ajudou a integrar o continente não com ambiciosos projetos políticos, mas com palavras.
Ao todo, são 87 cartas até então inéditas, trocadas entre 26 de abril de 1960, quando Candido ainda estava em Assis, no interior paulista – e não a cidade italiana, berço de São Francisco, para onde o crítico de cinema e amigo de longuíssima data Paulo Emílio Salles Gomes achou que ele tivesse ido – e 18 de outubro de 1983, esta última enviada por Rama exatamente um mês e dez dias antes do acidente aéreo fatal, quando o crítico uruguaio já vivia em Paris. É interessante ver, ao longo das missivas, como uma certa formalidade cordial inicial – oriunda de relações recém-estabelecidas – vai dando lugar ao afeto e a uma espécie de cumplicidade que só os grandes amigos de fato têm. De “meu caro Rama” e “Sr. Antonio Candido, estimado amigo”, eles se tornam “querido Ángel” e “querido Antonio”. Mas nunca deixam de lado o desejo comum: integrar, culturalmente, os países latino-americanos.
Um exemplo disso é o convite que Rama faz a Candido para uma conferência na Universidad Central de Venezuela, em Caracas – onde o crítico uruguaio havia se exilado devido ao inóspito e ditatorial clima político de seu país. Segundo Rama, em carta enviada ao brasileiro em 8 de setembro de 1976, na Venezuela “não se sabe nada nada nada de literatura brasileira e você faria um grande bem à integração do continente em que estou empenhado”.
Essa integração tão cara ao crítico uruguaio, inclusive, se materializou na forma na Biblioteca Ayacucho, criada em 1974, um ambicioso projeto que tencionava publicar os principais autores latino-americanos – e Antonio Candido foi fundamental não só na indicação dos autores brasileiros (entre eles Mário de Andrade, Silvio Romero e Guimarães Rosa), mas também ao designar colaboradores e acompanhar os bastidores da produção dos títulos, corrigindo definitivamente a exclusão do Brasil da cena cultural latino-americana. Para o professor e crítico brasileiro, a ideia era “grandiosa”, como escreveu a Rama em carta de 8 de outubro de 1974, ainda nos primeiros momentos da coleção: “Quanto ao projeto Ayacucho, o Sérgio (Buarque de Holanda) não me disse nada, e tenho apenas as linhas gerais da sua carta. Parece uma empresa grandiosa e de alcance; você pode contar comigo”. Hoje, a coleção tem mais de 250 títulos publicados.
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