Este meu primeiro livro de contos divide-se em duas partes: (1) Contos da Província e (2) Outros Contos. Contei histórias, inventei casos, imaginei vidas. Os contos que compõem a primeira parte tratam de temas recorrentes da vida interiorana – do interior onde vivi –, pois demorei a conhecer o mar. Desde criança ouvi contar da Mula sem Cabeça que aparecia nas madrugadas; da brasa vermelha do Pito do Saci sobressaindo-se de noite na escuridão. Sempre a noite escura, nas histórias de assustar criança... A pior me parecia a do Lobisomem, o qual eu via em minha mente como um cachorro feroz cheio de babas ao latir vendo a lua. Faz muito tempo...
Portanto, o medo do “de noite” se foi. Descobri outras facetas da noite: olhei o luar com suas nuances, tive a sorte de ver estrelas cadentes. Reconheci, então, que podia até rir dos escuros a respeito dos quais me pus a especular. Tentei denominar os breus que povoam os nossos dias em sociedade, procurei ver as trevas naquilo tudo destinado ao segredo. Muitos dizem que, quando a vista se acostuma, a gente enxerga no escuro. Mas – diria ainda: tropeça-se e engana-se com algum reflexo, também. Nesta ambiguidade parti de pontos incertos que talvez tenham sido presenciados e guardados na memória. Não sei. No entanto, conjeturei e, fantasiando, escrevi. Nada é real, portanto. Apenas presumível. A segunda parte toma assuntos daqui e dali. A cidade grande mostra seus desacordos e neles, inevitavelmente, atua o ser humano. Cá e acolá, pelas suas reentrâncias, estão motivos para se dizer bem ou se dizer mal do que se vê ou se supõe ver. Pinçar nas curvas, lá onde elas se viram e se escondem no perder de vista, é um ofício que nos desafia. Aqui, também, tentei. Mas, num ou noutro caso, há sempre razão para se exaltarem ou se evidenciarem seres que os habitam.
“Descampado de novo. Para lá nos conduzíamos quase todas as noites. Ficávamos no escuro ou com uma lanterna acesa, discretamente posta no chão da caminhonete. Lembro-me bem da passagem dos gambás pelo capim baixo, das corujas em voos rasantes na paisagem. Melhor quando havia lua cheia no céu azul, cantos dos grilos ecoando nas noites de verão. À época, eu estava apaixonada e me submetia a qualquer programa, mesmo porque não havia motel, ainda, em nossa cidade. Foi numa noite de lua entre nuvens cinza que lhe falei da minha gravidez. Pela expressão do rosto, ele mostrou contrariedade; os olhos azuis escureceram. Suspirou fundo e deu partida no carro. Deixou-me em casa.” (Na província)
“- Na minha noite de núpcias tive um sonho; nunca contei a ninguém. Conto, agora, para você. Sonhei que eu estava num quarto e havia, num canto, um berço com uma borra de café no meio do lençol branco. Essa borra se transformou numa grande borboleta preta que, ao voar, se dividiu em duas: uma borboleta negra e outra, também negra, com duas bolas rosa em cada uma das asas. A borboleta colorida saiu pela janela e a outra ficou dentro do quarto. Nesse momento, vi meu pediatra, o médico que me cuidara na infância, em sua mesa de trabalho. Acordei encafifado. A alegria de Helena me distraiu.” (Sonhos)
Nascida em Major Prado, distrito de Araçatuba (SP), Maristela Veloso Campos Bernardo formou-se na PUC-SP e dedicou-se à formação de professores na Unesp. Depois de aposentada começou a escrever e publicou suas memórias de infância – A Mulher Olhando a Menina – pela própria Scortecci, no final de 2010, editora pela qual, também, já publicou três contos em Encontro Pontual – Antologia de Poesias, Contos e Crônicas, 2010. Da Província e Outros Cantos contém os contos escritos entre 2008 e 2014, quando a autora voltou sua atenção aos temas recorrentes nas angústias que povoam as almas abafadas por valores morais rígidos. Valores que se tornam cruéis nas cidades do interior, mas não menos destrutivos em outras paragens.
Serviço:
Da Província e Outros Cantos
Maristela Veloso Campos Bernardo
Scortecci Editora
Poesia
ISBN 978-85-366-4659-6
Formato 14 x 21 cm
132 páginas
1ª edição - 2016
R$ 35,00