Livros com erros tipográficos são cobiçados por colecionadores

O Globo - Bolívar Torres - 22/04/2017 |

Já dizia Vinicius de Moraes: “Para aquele que vos ama vossos defeitos são poesia”. No coração de muitos bibliófilos, estudiosos e colecionadores, nada é mais lindo do que os erros de tipografia em publicações antigas. Maltratadas pelo descuido e pelas más condições de impressão do passado, exemplares raros de primeiras edições de obras importantes são cobiçados décadas após seus lançamentos, justamente por suas imperfeições.

Às vezes, é uma letra trocada que altera o sentido da frase de um grande autor, com consequências hilárias e pitorescas; outras, uma errata absurda, inserida de última hora. Frutos do acaso — ou não — as gralhas, como eram chamados os equívocos dos tipógrafos, merecem uma homenagem especial no Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, celebrado nesse domingo. Mais do que fontes de boas histórias, elas jogam luz sobre as dificuldades do processo de fabricação editorial.

— Como os erros são corrigidos em edições posteriores, os exemplares se tornam únicos. Mas, para ser valioso, também precisa haver um elemento que atice. Exemplares com erros famosos viraram objeto de fetiche — explica o poeta, bibliófilo e imortal da Academia Brasileira de Letras Antonio Carlos Secchin, dono de uma vasta coleção de livros raros e autor do livro "Guia dos sebos" (Lexicon).

O primeiro título lembrado pelo acadêmico é “Obras”, de Claudio Manoel da Costa, cuja gralha aparece justamente... no título. Logo na folha de rosto da primeira edição, de 1768, guardada na Biblioteca Nacional, lê-se um enorme “Orbas”, com as letras trocadas. Na literatura brasileira, o livro é a pedra de toque do arcadismo — que, pelo jeito, já começou acidentado por aqui.

— O título aparece logo na folha de rosto, em letras grandes. Como ninguém pode ter percebido? — espanta-se Secchin.

Se o “Obras” rendeu a gralha mais simbólica, a mais famosa está na segunda edição do “Poesias completas” (1902) de Machado de Assis. O Bruxo ficou arrasado ao ver que, em uma página, o tipógrafo havia trocado o “e” pelo “a” na palavra “cegará” — imprimindo um nome feio onde deveria constar um tributo. Ficou assim: “Não deixo esse prefácio, porque a afeição do meu defunto amigo a tal extremo que lhe cagará o juízo”.

Todos os exemplares que ainda não haviam saído da Garnier (editora de Machado) foram emendados a nanquim — segundo a lenda, pelo próprio Machado. Um desses exemplares se encontra à venda por quase R$ 900 na Estante Virtual. O Santo Graal dos colecionadores, no entanto, são os raros exemplares que escaparam da canetada.

O bibliófilo fluminense Luís Pio Pedro é um dos felizes proprietários da edição original, sem alterações, encontrada em uma livraria paulistana em 2000. Para adquiri-lo, contou com a boa vontade do livreiro.

— Percebi que aquela seria talvez minha única oportunidade de adquirir um exemplar tão cobiçado — conta. — Propus pagá-lo em duas vezes, no que o livreiro amigo consentiu.

Secchin tem uma teoria para o caso de “Poesias completas”. O acadêmico considera suspeito um erro dessa natureza surgir numa segunda edição. Para ele, é praticamente impossível não ter sido uma sabotagem ou fraude.

— Como pode ter uma palavra certa na primeira e ela aparecer errada na segunda? Era só botar na máquina e repetir a impressão — explica.

Há, porém, um caso bem documentado de erros surgidos em reedições. Biógrafa de Jorge Amado, a jornalista e curadora da Flip Joselia Aguiar conta que Paloma Jorge Amado, filha do escritor, realizou, nos anos 1990, um trabalho de “fixação” de texto da obra de seu pai, financiado pela Odebrecht. Com ele ainda vivo, pôde checar e tirar dúvidas.

— O que Paloma notou foi que, quanto mais reedições tinha o livro, mais erros apareciam — diz Joselia. — Os campeões eram “Capitães da Areia” e “Gabriela”.

Nem todo autor teve a sorte de consertar sua obra ainda em vida. Atormentado pela quantidade de gralhas em seu “A profissão de Jacques Pedreira”, João do Rio ganhou na justiça o direito de destruir todos os exemplares impressos. Porém, não resistiu à tentação de guardar alguns deles em casa, que foram encontrados após sua morte. Não fosse isso, o romance talvez nunca tivesse chegado aos dias de hoje. Em 1992, uma nova edição publicada pela Casa Rui Barbosa resgatou a forma pretendida por João do Rio, quase um século depois da sua abortada publicação.

Joia sem valor literário

Quando o problema era percebido antes da distribuição (mas depois da impressão), os editores recorriam a erratas. A do romance “Flor de sangue”, de Valentim Magalhães, fez um livro sem valor literário virar joia entre colecionadores. Depois de perceber que havia matado o mesmo personagem de duas formas diferentes, o autor alertou: “à página 285, 4ª linha, em vez de — ‘estourar os miolos’ — leia-se — cortar o pescoço”. Segundo Secchin, trata-se de um caso clássico em que a errata é hoje mais importante do que a própria obra. No mercado livre, a primeira edição, de 1897, é vendida por até R$ 1800.

De forma geral, erratas impressas são mais fáceis de encontrar. As que vinham em forma de etiquetas, coladas na página, são muito mais procuradas e caras. A maioria se perdeu ao longo do tempo, desgarradas de seus livros.

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